Carlos Silveira
“A riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que nos coube”.
(Machado de Assis – Helena)
A Folha de São Paulo escolheu o domingo de 2 de setembro de 2023 para publicar, com destaque, artigo com um título entre ingênuo e malicioso. O artigo, “Ser rico não é pecado”, veio assinado por João Camargo, presidente da Esfera Brasil, que se apresenta como “um think tank independente e apartidário”, reunindo “empresários, empreendedores e a classe produtiva”. Aos distraídos relembro: na linguagem dessa turma por “classe produtiva” não se entenda os trabalhadores, mas os proprietários de capital.
O ingênuo seria por levantar uma questão de natureza religiosa para expressar o que há de mais material na vida humana: o dinheiro. O malicioso por atribuir o mal a uma proposta no campo do mundo econômico que já foi dominante décadas atrás no mundo capitalista desenvolvido.
Se recorrermos à religião é possível que se creia, sim que há algo de pecaminoso sim na riqueza. Não é mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha que um rico subir ao reino dos céus, o mais gratificante dos prêmios? Mas, isso seria no tempo da ‘teologia da libertação’. Hoje já vivemos os dias da ‘teologia da prosperidade’. A religião mudou e não há mais pecado em ser rico.
Mas, no terreno da economia e da sociedade – que é o que verdadeiramente o artigo trata -, o que se discute é o ‘dízimo’ público, o imposto. Sobre isso, é bom lembrar de um reverenciado juiz da Suprema Corte estadunidense, há cem anos atrás, no país da liberalidade econômica naqueles anos: Oliver Wendel Holmes já havia enunciado que “impostos são o que pagamos para ter uma sociedade civilizada”. Não se trata, portanto, de reverenciar ou não o Senhor, mas de tornar a sociedade….civilizada.
Mas quem deve pagar o imposto para que sejamos civilizados? As pessoas e as empresas, por certo. Mas como, quem e quanto? Essa é a questão que se discute hoje no Brasil, sem que se esteja reescrevendo totalmente a história tributária no país como se se começasse do zero. Parte-se do que foi sendo constituído ao longo da nossa complicada história e busca-se seu aperfeiçoamento.
Porém, esse aperfeiçoamento não se dá em abstrato. Se dá numa sociedade com interesses distintos, muitos deles opostos. Há questões que são de mera eficiência. Uma parte disso foi tratado na reforma tributária recentemente aprovada no Brasil, depois de década e tanto de tramitação. Mas outra parte ficou de fora. E é a esta que a Folha abre espaço para um articulista apresentar sua oposição a mudanças, e que a denuncia como inspirada numa visão maniqueísta do pecado e de culpa. Ele não quer a segunda parte das mudanças tributárias que Lula prometeu na campanha. Num resumo feliz: “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”.
Para isso , o autor vale-se de vários mitos elaboradas em centenas de artigos e livros ao longo de décadas e décadas no campo da discussão econômica. A construção dominante, mainstream se se quiser, promoveu ao longo de décadas, com especial centralidade nos Estados Unidos, uma pletora de argumentos para conduzir, em resumo, a dois cânones ungidos “sagrados”: a redução do imposto e seu alívio aos donos da riqueza. Junto com eles, a corrosão da crítica à desigualdade.
A virtuosidade da desigualdade foi cantada desde o século XIX, em clássicos que Marx tanto criticou. Vêm daquele século as ideias do “darwinismo social”, raiz da formulação mais atual da “meritocracia”. E que o presidente da Esfera Brasil presta as devidas homenagens: é rico quem merece, porque contribuiu mais para com a sociedade. Reproduzo um trecho: “É ele quem investe, empreende, assume riscos, inova, cria riquezas, gera emprego e paga enormes somas de tributos.” Talvez devamos agradecer sua moderação, porque um seu possível inspirador, o neoliberal avant la lettre ,Ludwig Von Mises, já afirmara que: “Você tenha a coragem de dizer às massas o que nenhum politico disse: vocês são inferiores e todas as melhorias em suas condições de vida que você simplesmente assume como garantidas, você deve ao esforço de homens melhores do que você.” (Wade, 2014)
Essa formulação margeia outra de curso, também mais recente, a “teoria do gotejamento”, à falta de melhor tradução para trickled down economics. Segundo ela, é ótimo que os ricos enriqueçam porque, de suas ações, geram-se desenvolvimento e sobra; ou seja, “goteja” também para os debaixo, os quais não os teriam não fossem os de cima.
Outra formulação antiga, muito antiga, afirmava que era preciso haver desigualdade porque, enquanto os pobres consomem tudo que ganham, os ricos, beneméritos, poupam e investem para o bem geral de todos. Até Keynes, pré-Teoria Geral de 1936, em 1919, defendeu o argumento. Um exemplo nosso conhecido, vem do ex-ministro da Fazenda dos tempos duros do “milagre brasileiro”’. Diante da concentração da renda que veio junto com o milagre, Delfim Netto afirmava ser preciso primeiro “fazer o bolo crescer para só depois distribuí-lo”.
No arsenal criativo criado para conter ideias distributivistas, muito papel foi gasto para afirmar que a discussão sobre desigualdade resumia-se, em última instância, à inveja, um “pecado” maligno, ao contrário da ganância, um, se pecado, benigno. É do que acusou Deepak Lal (2014) ao conhecido Thomas Piketty, e seus livros sobre desigualdade, decretando que “O tratado do professor Piketty é baseado em inveja… ‘a mais anti-social e maligna de todas as paixões’’. Nos termos do escriba do presidente da Esfera Brasil, a mais ‘pecaminosa’.
Nem mesmo falta o argumento da inutilidade da velha cepa neoclássica. O mercado sempre dribla o Estado porque ele, deixado livre é perfeito. Senão perfeito, melhor. A versão mais atualizada e potenciada é a ‘teoria das expectativas racionais’ que circulou muito tempo como A verdade econômica, até que seu principal teórico, o prêmo Nobel Robert Lucas, caiu numa certa desgraça por negar a existência da crise de 2008, quando ela já corria solta. Sendo cáustico, a crise não existia porque não cabia em sua teoria perfeita: em resumo, de nada adianta intervir na economia, porque ela sempre retoma seu rumo ‘perfeito’ no mercado livre, se possível longe dos tributos e do Estado.
Sem as referências que fiz, esses argumentos se esparramam pelo artigo visando deter a iniciativa tanto daquela contida na MP de Lula com relação aos ‘fundos individuais’, como da tributação ‘off shore’. O artigo inclusive confunde estas medidas, com a proposta de tributação dos superrricos, medida que até um grupo de milionários propôs no Forum Mundial de Davos, que seria uma espécie de IPTU exclusivo apenas para a super-riqueza, daqueles que não têm nenhum problema em ir no seu jatinho executivo particular apenas para assistir a uma partida de tênis no US Open em New York e voltar.
A experiência dos EUA é muito interessante nesse aspecto. Em sua história econômica do fim da crise de 1929-1932 até os dias de hoje, há claro divisor entre dois períodos. O primeiro, que vai daqueles anos ou um pouco mais à frente, até 1980, ano simbólico, em que Ronald Reagan foi eleito presidente. O segundo, daquele ano até os dias de hoje. O primeiro período foi de alto crescimento (de 1947 a 1979: 4,9% ao ano) e distribuição dos frutos desse crescimento para praticamente toda a população do país; o segundo, foi de redução do crescimento (de 1980 a 2023: 2,4 % ao ano) e concentração progressiva da renda e da riqueza para uma parcela cada vez menor. Há muitas diferenças a marcar os dois períodos, mas chamo a atenção para o que aconteceu com o Imposto de Renda. Em 1964, esse imposto era altamente progressivo, com a alíquota máxima chegando a 94 %. Posteriormente, foi sendo reduzida, de 70 para cá, até chegar ao atual 37 %, (bem acima dos nossos 27,5 %), ao lado de sua crescente regressividade, culminando com Trump em redução ainda mais acentuada. Não se trata de fazer uma interpretação causal entre progressividade e crescimento, mas de negar peremptoriamente a causalidade inversa: progressividade e estagnação, como supõe o articulista da Folha.
O assunto é vasto e complexo, mas a extrema desigualdade é um mal em si mesmo, a que um país que se pretenda civilizado não pode escondê-la debaixo do tapete, mesmo porque ela se volta contra o país e eles estão por toda parte, como nos índices de mortalidade infantil, na criminalidade, na violência, na expectativa de vida, na obesidade, na gravidez adolescente e até nos níveis de confiança social. Isso é mostrado à farta por Wilkinson e Pickett (2010) que em seu livro numa análise comparativa entre países da OCDE, de um lado, e de outro, dos estados nos EUA, mostra que a piora nos índices sociais, no universo deles que examinou, estão muito associados à desigualdade da renda per-capita.
Ademais, a concentração da riqueza se manifesta no poder sobre a sociedade restrita a poucos com interesses nem sempre harmonizados aos da sociedade como um todo. Como esse poder se manifesta não só no mundo empresarial, mas também na política, na mídia, tradicional e digital, na justiça, na formação ideológica é preciso diluir esse poder no seio da sociedade. Como, aliás, o bruxo do Cosme Velho já havia pressentido na epígrafe acima.
E a tributação progressiva, tanto da renda quanto da riqueza, é um instrumento de reequilíbrio econômico e social. Não único, mas fundamental.
WADE, R. (2014) “The Piketty phenomenon and the future of inequality”, Real World Economic Review n.69, outubro.
WILKINSON, R. e PICKETT, K. (2010) “The spirit level – why greater equality makes society stronger”. New York: Blomsbury Press.
DEEPAK LAL (2014) Inequality and envy. Disponível em: https://www.isb.edu/en/news-events/news-grid/Inequality-and-Envy.html