Marcio Pochmann* | Publicado originalmente em O Estado de São Paulo
A reforma do Estado é urgente e não pode mais ser adiada; a mediação entre governo e mercado segue pouco transparente, burocratizada e disfuncional
O Estado brasileiro segue sendo o centro sob o qual se assenta a saída soberana e nacional da crise atual que abate o modelo de capitalismo herdado do regime militar (1964-1985). Seus dois principais vetores obstaculizam estruturalmente o caminho possível do desenvolvimento pautado pela relação direta entre bloco de investimentos e ciclos de consumo.
Explicando melhor, a dinâmica capitalista tem se movido por meio da fundação de blocos de investimentos que representam o adicional do equivalente a 5% a 7% do Produto Interno Bruto (PIB) à Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) e dos ciclos de consumo decorrentes da ampliação do nível de emprego e renda da população. Desde a Revolução de 1930, o País assistiu ao desenlace de três grandes blocos de investimentos, sucedidos por vários ciclos de consumo.
O primeiro bloco de investimento ocorreu na década de 1940 com a instalação das indústrias de base (Companhia Siderúrgica Nacional, Álcalis, Vale do Rio Doce, entre outras), seguido de um segundo nos anos 1950, com o avanço das indústrias de bens de consumo duráveis e de capitais conduzido pelo Plano de Metas de JK (1956-60). Por fim, o último bloco de investimento realizado na década de 1970 com a implantação do II Plano Nacional de Desenvolvimento no governo Geisel (1975-79).
De lá para cá, o Brasil assistiu a três importantes ciclos de consumo (Plano Cruzado, em 1986; Plano Real, em 1994-95; e governo Lula) e a nenhum bloco novo de investimentos, não obstante algumas tentativas que terminaram se mostrando frustradas. Sem a implementação de um quarto bloco de investimentos, dificilmente a economia nacional retorna à trajetória sustentável do crescimento econômico.
Nas últimas três décadas, o predomínio do baixo dinamismo do capitalismo brasileiro coincide com o esvaziamento do setor manufatureiro, o avanço da reprimarização da pauta de exportação e a dominação financeira da economia nacional. A inflexão desta trajetória pressupõe a mudança do Estado frente aos dois entraves principais do País.
O primeiro relacionado à herança que vem desde a colonização portuguesa, fundada sempre na perspectiva do ganho fácil e rápido, o curtoprazismo. Para Caio Prado Jr., por exemplo, o sentido da colonização era o da exploração visando tirar o máximo e o mais rápido possível, sem maior compromisso com a formação de uma nação.
Sistema produtivo. A retomada do investimento atual requer o diálogo permanente com o futuro a ser dirigido por meio do esforço coletivo da tomada de decisão no âmbito dos atores relevantes. Para um país com as características do Brasil, a reorganização do sistema produtivo estatal e o novo compartilhamento de tarefas com o setor privado são fundamentais.
O segundo entrave encontra-se no mantra que define o uso público para fins privados. De acordo com Raymundo Faoro, a prevalência de uma elite patrimonialista que se apropria do Estado em benefício próprio definia os vínculos do uso público em favor dos interesses privados.
Assim, o necessário reposicionamento do modelo de capitalismo herdado do regime militar implicaria agir radicalmente sob o arcabouço institucional que regula a relação entre o Estado e o mercado. Até a década de 1950, quando a presença de grandes empresas era insignificante, a relação do Estado com o mercado foi mediado por regras relativamente simples.
Somente com efetivação dos dois grandes blocos de investimento implementados pelo Plano de Metas e pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento que se consolidou a presença e a atuação prevalecente da grande empresa no Brasil com o Estado. Isso porque para um país de dimensão continental as demandas e ações do Estado são predominantes da grande escala, como a construção de Brasília, da Transamazônica, da Ponte Rio-Niterói, da Itaipu, entre outros exemplos.
A reforma administrativa imposta logo no começo do regime militar estabeleceu o arcabouço institucional vigente até hoje na relação entre o Estado e o mercado. Não obstante modificações importantes, ainda que de caráter pontual, a mediação entre o poder de arrecadação e gasto do Estado tende a revelar relações privilegiadas, quando não de favorecimento privado.
Ademais, fornecedores privados do gasto e investimento públicos aperfeiçoaram suas conexões, ampliando-as para o jogo eleitoral. O financiamento privado das campanhas eleitorais parece cruzar-se com pleitos posteriormente atendidos por decisões governamentais.
A reforma do Estado é urgente, não devendo ser postergada. A mediação do Estado com o mercado segue pouco transparente, burocratizada e disfuncional, permitindo que aquele que fiscaliza receba remuneração e valorização superior ao do ordenador de despesa, sem estar ainda exposto a qualquer vaticínio eleitoral ou de responsabilidade por suas decisões.
Tudo isso parece contribuir para que complexidades burocráticas crescentes terminem por favorecer facilidades reconhecidas pela completa deturpação do que se poderia reconhecer como princípio republicano. O abandono de práticas arcaicas não pode significar a desconstrução das grandes empresas brasileiras, pelo contrário, sobretudo as construtoras, a Petrobrás, bancos, entre outras.
Muito da pregação crítica ao verificado na relação da Petrobrás com suas fornecedoras privadas parece não diferenciar “a água suja do banho com a criança limpa”. E, dessa forma, corre-se o risco de abrir mais um flanco no movimento maior de internacionalização da estrutura produtiva nacional, como nas construtoras, bancos, empresas estatais.
A quem interessa uma Petrobrás frágil, a não ser aos defensores de sua privatização e da flexibilização do regime de concessão do pré-sal, que têm subentendido as grandes companhias estrangeiras competidoras da maior empresa pública brasileira? Com a mudança do arcabouço institucional, o Brasil pode distanciar-se da armadilha que o força prisioneiro de um modelo de capitalismo ultrapassado e desconexo dos desafios da continuidade do caminho do desenvolvimento nacional com inclusão social.
*Márcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas