Magda Barros Biavaschi e Miguel Soldatelli Rossetto [1]
As desigualdades se aprofundam em tempos de capitalismo globalizado e hegemonizado pelos interesses das finanças. Enquanto em 1973, a população 1% mais rica detinha 10% da renda, em 2013 passou a deter 20% (PIKETTY, 2014). Nesse cenário, os direitos sociais sucumbem à força bruta e às políticas de ajuste que, apesar de comprovadamente ineficazes, continuam sendo “recomendadas” pelos organismos emprestadores de dinheiro. Movido por um desejo insaciável de acumulação de riqueza abstrata (BELLUZZO, 2013), o capitalismo vai engendrando novas formas de organização, buscando eliminar quaisquer obstáculos ao seu livre trânsito. No Brasil, por exemplo, as políticas sociais públicas inclusivas, o Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho. Não à toa, via recurso extraordinário, está sendo postulado do STF que “roube a fala” do TST para que este, em suas decisões, não ofereça limites “à livre iniciativa”, como se estivéssemos no século XIX, em tempos da Constituição liberal de 1891.
Em Casa Grande & Senzala, Freyre desnudou o caráter despótico da sociedade escravocrata brasileira, centrada na vontade e no poder do senhor que conhece apenas seus desejos, a tudo e a todos objetivando para realizá-los. A Abolição livrou o país de seus inconvenientes. Quanto aos negros, porém, abandonou-os “à sorte”, consolidando-se a exploração de uma mão de obra barata em uma sociedade costurada pelo signo da desigualdade e da exclusão: marcas da herança colonial inscritas, a ferro e fogo, na estrutura social, econômica e política deste Brasil de mil e tantas misérias, citando Guimarães Rosa. Assim, a relação entre escravo e senhor apenas formalmente culminou no homem “livre”, não sendo superadas as condições da dominação e da sujeição (BIAVASCHI, 2007).
Ainda hoje há resquícios dessa herança, por exemplo, na ausência de política eficaz de democratização do acesso à terra e tributação da renda; na dificuldade para regulamentar a “PEC das domésticas” e a PEC 57A, sobre expropriação da propriedade quando houver trabalho análogo ao de escravo; na tentativa de flexibilização do conceito de trabalho escravo; nas formas de preconceito e discriminação presentes na formação da sociedade brasileira que, extrapolando a esfera da vida doméstica, afloram em diversos setores da sociedade, da política, do Judiciário (BIAVASCHI, 2016).
A partir de 1930, em processo não linear completado pela Constituição de 1988, mulheres e homens trabalhadores foram conquistando o status de sujeitos de direitos trabalhistas, passando pela: criação das Juntas de Conciliação e Julgamento, em 1932; CLT, em 1943; Justiça do Trabalho em 1939, instalada em 1941 e integrante do Judiciário em 1946, incumbida de concretizar um direito novo que buscou compensar a assimetria nas relações empregado x empregador, colocando diques à ação trituradora do capital. Daí esse Direito e as instituições aptas a dizê-lo sofrerem duros golpes em tempos de regresso liberal.
Nos governos Lula e Dilma, políticas de valorização do salário mínimo, programas como Bolsa Família, benefícios da Previdência, Pro-Uni, sistema de quotas, entre outros, melhoraram a vida dos menos favorecidos. Ainda que dados do Banco Mundial de distribuição de renda comprovem tal melhora, o Brasil mantém-se entre as piores posições do mundo. Mesmo assim, vozes movidas por interesses econômicos e financeiros internos e externos ao país trataram de desrespeitar a soberania do voto. O impeachment da Presidenta Dilma, sem crime que o justifique, foi o primeiro elemento do golpe à democracia.
A cada dia mais fica evidente que, além da soberania nacional, a questão central é introduzir uma agenda de conteúdo ultraliberal e regressivo, com potencional altamente desigualador e impacto negativo às políticas inclusivas. A PEC 241, aprovada na Câmara, é estruturante do modelo que buscam implementar, como também: a reforma da Previdência; a prevalência do negociado sobre o legislado; o PLC 30/2015 (PL 4330/04 na Câmara) que libera a terceirização para quaisquer atividades; a flexibilização do conceito de trabalho escravo; a redução da idade para o trabalho, entre outras. Os que as defendem apostam no aprofundamento do ajuste fiscal, com severo corte de gastos públicos. E ao argumento falacioso da conquista da “modernidade”, maior produtividade e competitividade, clamam pela “quebra” da “rigidez” das normas da CLT de 1943, verticalizadas pela Constituição de 1988. Nessa dança, a Casa Grande dá o tom e o som.
O programa “Uma Ponte para o Futuro”, do PMDB, http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf, fundamenta muitas das propostas do governo Temer. Acaso aprovadas, mais uma vez serão colocados obstáculos à difícil caminhada superadora das heranças coloniais rumo a uma nação moderna e industrializada, hoje integrante do G20 e dos Brics. Sua não adoção pela então Presidenta – segundo Temer referiu nos EUA em encontro com empresários – teria sido uma das razões do impeachment.
Daí causarem perplexidade as declarações do Ministro do STF, Gilmar Mendes, incumbido de zelar pela Constituição, sobre Bolsa Família, afirmando ser “compra de voto”, e sobre a Justiça do Trabalho. Em liminar, que se confia não terá chancela da Corte, suspendeu o andamento das ações sobre ultra-atividade de normas coletivas, forte na Súmula 277 do TST, assinalando que essa interpretação atende a uma “lógica voltada a beneficiar apenas os trabalhadores”, cogitando de “fraude hermenêutica”, “jurisprudência sentimental”. Em São Paulo, vaticinou: “Tenho a impressão de que houve uma radicalização da jurisprudência, no sentido de uma hiperproteção do trabalhador, tratando-o quase como um sujeito dependente de tutela”, afirmando que o Brasil é “desenvolvido industrialmente” com “sindicatos fortes e autônomos” e, inclusive, um Presidente “vindo da classe trabalhadora”: http://www.valor.com.br/politica/4752055/gilmar-mendes-acusa-justica-trabalhista-de-hiperprotecao.
Num país de profundas desigualdades, com desemprego novamente alarmante e formas de contratação burladas que retiram da proteção social milhares de brasileiros, tais afirmações privilegiam um dos polos da relação, o capital. Opção que, contraposta ao princípio constitucional do valor social do trabalho que fundamenta a ordem social e a econômica (artigos 1º, IV e 170), acirra as inseguranças, fomenta a violência e traz sérias dificuldades à construção de uma sociedade civilizada e democrática. Sonho do qual a humanidade ainda não acordou. Muito menos o Brasil.
Referências:
BELLUZZO, L.G. O capital e suas metamorfoses. SP: UNESP, 2013.
BIAVASCHI, M. B. O direito do trabalho no Brasil – 1930-1942. SP: LTr, 2007.
[1] Desembargadora aposentada do TRT4, Pós-doutora em Economia do Trabalho, IE/UNICAMP e Pesquisadora no CESIT/IE/UNICAMP. Miguel foi Vice-Governador do RS e Ministro do Desenvolvimento Agrário e do Trabalho e Emprego, respectivamente, nos governos dos Presidentes Lula e Dilma Rousseff.