Carta 34 | Olhares sobre o mundo contemporâneo

Esta edição da Carta Social e do Trabalho traz seis estudos pertinentes sobre temas diversos relacionados com o mundo do trabalho e o desenvolvimento econômico contemporâneo.

 

O primeiro artigo, de Christian Duarte e Carlos Salas, aborda um tema de amplo debate internacional e de suma importância na atualidade para o Brasil, que é a externalização produtiva, também conhecida como terceirização do trabalho. As transformações recentes na regulação trabalhista brasileira tornam a discussão de grande relevância no momento. Os autores tratam do tema a partir de duas perspectivas. Sob a primeira, indicam evidências históricas da transformação do processo produtivo que apoiados em avanços tecnológicos e organizacionais conduzem a lógica empresarial a cortes de custos e na qual a externalização do trabalho não é um fenômeno novo no capitalismo, mas a continuidade de um processo de maximização de lucros, com mais outra nova “roupagem”. Os autores nos lembram da prática do “downsizing” das empresas nas décadas de 1980 e 1990, uma reestruturação corporativa que buscava incrementar os lucros líquidos das empresas e valorizar suas ações no mercado de capitais, resultando na redução dos níveis gerenciais e em demissões generalizadas de trabalhadores. A “deslocalização” das empresas nos anos 2000 também seguiria a mesma lógica. Nesse sentido, os autores passam ao passo seguinte, e tratam de analisar os efeitos desse processo sobre os trabalhadores e suas condições de trabalho.

 

Por falar em emprego e condições de trabalho, o segundo artigo, redigido por Cheng Li, propõe uma reflexão sobre a transição para um novo paradigma tecnológico na atividade produtiva, que tem sido chamado de Inteligência Artificial – IA. O autor ressalta que diversos sociólogos e, mesmo alguns filósofos, veem na IA a possibilidade de liberar o ser humano de atividades de trabalho rotineiro (que a máquina pode exercer) para outras mais nobres (relacionadas à intuição e à criatividade). Contudo, o desenvolvimento da IA tem atingido de forma inconteste a “última linha defensiva”, segundo Cheng Li, e mostrado que ocupações de alta demanda e mais qualificadas (como as de tradutores, jornalistas e contadores) já se mostram vulneráveis e sujeitas a redução de postos de trabalho. Isso porque os ganhos de produtividade com a introdução da IA têm limitado a geração de empregos e intensificado o trabalho para os que permanecem em seus postos. Mas, o autor não se circunscreve à análise do mercado de trabalho, lançando o olhar sobre a estrutura internacional de produção e o consequente distanciamento entre os países produtores de tecnologia e os consumidores. Ele ressalta que esse movimento impulsionaria o crescimento econômico para os primeiros e à subordinação cada vez mais ampla para os segundos.

 

Baseado em diversos estudos, Cheng Li adverte que a atual divisão internacional do trabalho apenas continuará a aprofundar as desigualdades já existentes. Outro ponto ressaltado pelo autor se refere aos arranjos de proteção social. Tendo em vista os impactos da difusão da IA sobre o emprego, é preciso discutir as modificações necessárias nas políticas públicas, em especial no sentido de reduzir a vulnerabilidade social dos trabalhadores mais pobres. Para tal, o autor destaca a possibilidade de adoção de um programa de Renda Mínima Universal.

 

O terceiro artigo, elaborado por Pietro Borsari, trata de outro tema central para a Economia do Trabalho, a saber: a jornada de trabalho. O objetivo do artigo é colocar em discussão os determinantes institucionais da jornada, explicitando que existem distintos padrões nacionais. Após fazer referência à tendência histórica de redução do tempo de trabalho anual, possibilitada pelo crescimento da produtividade média e obtido graças à mobilização dos sindicatos, o texto se concentra na exposição dos determinantes institucionais, que diferenciam os países considerados mais avançados e (civilizados). A parte final do texto é dedicada a expor como a recente reforma trabalhista no Brasil incentivou o processo de flexibilização da jornada de trabalho, com implicações claras tanto para a gestão do trabalho em médias e grandes empresas como para as condições de vida dos trabalhadores.

 

A questão da desigualdade social é o pano de fundo do quarto artigo, cuja autoria é de Valter Palmieri Júnior. O texto apresenta uma perspectiva bastante incomum: o estudo do processo de “gourmetização” da alimentação. A tese central é que a diferenciação no consumo de alimentos industrializados no Brasil é produto da desigualdade social e, ao mesmo tempo, constitui uma nova faceta dos mecanismos de distinção social. A estratégia de diferenciação de produtos adotada pelas empresas líderes da indústria alimentícia é condizente com a segmentação dos mercados produzida pela elevada concentração da renda e com a correspondente estratificação dos consumidores.

 

Assim, o autor coloca em evidência o significado sociológico da existência de padrões de alimentação que exprimem critérios de diferenciação social baseados em valores culturais e na construção da personalidade social, explorados pela publicidade predominante nessa área. Portanto, a alimentação se apresenta como mais um capítulo relevante no estudo da sociedade brasileira, que se mantém profundamente desigual.

 

O quinto artigo, de Ricardo Cardoso, traz à tona a análise de uma política pública que ganhou expressão desde os anos 2000. Não se trata da garantia de um direito social universal, mas, de qualquer forma, uma política de fundamental importância para a cultura e identidade nacionais. O autor discute o papel do setor cinematográfico e de audiovisual, bem como sua política recente, para o desenvolvimento econômico e social do país, uma vez que gera postos de trabalho qualificados e reforça valores culturais. Também envolve toda uma estrutura que o suporta em seu processo de criação, como a econômica e a jurídica, entre outras. Uma das preocupações de Cardoso é ressaltar a alta dependência do setor em relação aos recursos públicos, assim como a hegemonia da indústria cinematográfica dos EUA no que tange à distribuição e exibição de filmes. Ao analisar a trajetória recente do setor enfatiza que este ramo da economia passou incólume pela crise de 2008 e atingiu, como denomina o autor, “ritmo de crescimento chinês”.

Contudo, a experiência brasileira mostrou que, no período em que o Estado exerceu poucas funções de regulação e incentivo, a iniciativa privada nacional não foi capaz de competir com os produtos estrangeiros no mercado interno, sobretudo os de origem estadunidenses. O autor ressalta a oportunidade que o marco legal da TV por assinatura trouxe e a transformação do mercado de produção, que passou a ocupar espaço na programação. Cardoso revela a conexão existente entre os diversos agentes envolvidos na produção, na radiodifusão e nas telecomunicações, e aponta os desafios atuais para o desenvolvimento do setor no País.

 

Por fim, o sexto artigo desta edição, de Lício da Costa Raiumundo, nos oferece outro tipo de enfoque, muito mais relacionado com a ordem econômica internacional e as tensões no âmbito da geopolítica mundial. O autor discute em seu artigo o dilema da Alemanha em relação à política externa, ora priorizando sua autonomia e soberania como Estado, ora tendo de abrir mão de parte de sua soberania em prol da consolidação da União Europeia. Lício analisa elementos centrais para a compreensão das contradições na trajetória recente do Estado alemão, tendo como pano de fundo a dinâmica do sistema internacional com base em coalizações e blocos de poder que mobilizam os países mais avançados. O autor destaca as reformas institucionais promovidas pelo governo Schröder e seus impactos sobre o seguro-desemprego, a assistência médica e o sistema de aposentadorias. Trata-se de um texto inspirador para a compreensão das contradições impostas pelo avanço da globalização e do neoliberalismo, buscando refutar as interpretações mais rasas ou simplificadores de tal problemática.

 

Boa leitura!
Os Editores

 

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