Imposto sobre grande fortunas para reduzir a desigualdade

Patrícia Mariuzzo | Publicado originalmente na revista Ciência e Cultura 

“Trata-se de uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, dotado de uma considerável fortuna, deve estar precisando de esposa”, diz a sra. Bennet logo no começo de Orgulho e preconceito, romance da escritora inglesa Jane Austen. A sra. Bennet resume o papel da mulher na sociedade inglesa do século XIX, relegada ao plano da família e à possibilidade de um casamento vantajoso para ter alguma segurança e estabilidade financeira. Os nobres descritos pela escritora vivem de renda, geralmente advinda de uma herança, em um mundo que valoriza mais o bom nome e a reputação das famílias do que o trabalho. Em O capital no século XXI, o economista francês Thomas Piketty alerta que, continuando com as práticas atuais, o capitalismo conduzirá o mundo de volta para o século XIX onde, como nos romances de Jane Austen, alguns indivíduos podem viver de renda, o trabalho para os ricos não é mais necessário e para os demais ele não gera crescimento ou mudança de classe social.

O capital no século XXI, que terá sua edição brasileira lançada em novembro próximo, pela editora Intrínseca, tornou-se um best seller da economia, desde seu lançamento em 2013, com dezenas de resenhas e análises ao redor do mundo. Em resenha para o The New York Review, Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia em 2008, afirmou que o livro vai mudar a maneira como pensamos a sociedade e a economia. O capital no século XXI analisa a dinâmica global de distribuição de renda e de riqueza desde o século XVIII em 20 países. Todos os dados estão disponíveis na página de Piketty (http://piketty.pse.ens.fr). “Eu usei dados históricos coletados nos últimos 15 anos por mim e minha equipe da Paris School of Economics”, explica o autor, em apresentação sobre o livro. A principal conclusão da longa pesquisa é identificar uma tendência de crescimento do capital que supera o crescimento da economia. Para Piketty, isso significa um retorno a um tipo de sociedade fortemente baseada no patrimônio, com alta concentração de riqueza nas mãos de um pequeno número de pessoas, um cenário gerado pela própria dinâmica do capitalismo, que resulta em altos níveis de desigualdade em todo mundo.

“O grande mérito do livro, provavelmente um dos motivos de sua enorme repercussão, é que Piketty não defende a superação do sistema capitalista, como defendia a crítica marxista, por exemplo. Ele é a favor do sistema, mas afirma a necessidade de reparos capazes de interromper esse processo de concentração de riqueza e geração de desigualdade”, explica Marcelo Manzano, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da Faculdades de Campinas (Facamp). “Não se colocar abertamente contra o capitalismo é a grande força e também a grande sutileza do livro de Piketty”, afirma Manzano.

MERITOCRACIA

Para Piketty o crescimento da desigualdade faz com que caminhemos para uma situação insuportável, especialmente pelas instabilidades sociais e políticas que decorrem dessa conjuntura, onde se dará mais valor à herança do que ao trabalho, como nos romances de Jane Austen. “Em um mundo onde a riqueza cresce mais do que a economia, como incentivar um indivíduo a concorrer ou produzir se o resultado não é medido pela sua contribuição?”, questiona Manzano. Os super-salários dos executivos estão entre os exemplos citados pelo economista francês. São valores que não têm relação direta com os rendimentos das empresas em que eles trabalham. Há um grande desequilíbrio. “São valores do capital, da ética do capitalismo que estão em crise, pela própria dinâmica da concentração do capital”, afirma o pesquisador da Unicamp. E trata-se de uma concentração em níveis alarmantes, com a riqueza dos mais ricos crescendo em um ritmo três vezes maior do que a do restante das pessoas.

Piketty defende a intervenção do Estado e de outras instituições, no sentido de repartir melhor os ganhos gerados pelo capitalismo, de uma forma mais equilibrada. Para ele, instituições democráticas e fiscais devem ajudar a retomar esse equilíbrio na distribuição da riqueza no mundo. “Ele propõe soluções ousadas como a taxação das grandes fortunas e um imposto internacional que regule a migração de capitais, defende o fim dos paraísos fiscais, medidas bastante utópicas, em nada triviais”, explica Manzano . Para ele as propostas de Piketty exigem um grande esforço de coordenação internacional.

MUNDO DESIGUAL

O imposto progressivo para grandes fortunas seria a forma de nivelar as condições de concorrência entre os indivíduos. Não é uma ideia nova e já é praticada em países como a Noruega, Suíça, Espanha e França. A medida também já foi adotada em momentos de crise, como no final da II Guerra Mundial, não para regular a concorrência, mas como o argumento de justiça social, para reconstruir uma sociedade destruída pela guerra. Vários países recém-saídos da guerra criaram impostos sobre o patrimônio para arrecadar dinheiro para investir em educação, saúde e infraestrutura. Será que precisamos de outra guerra para convencer a sociedade (ou os ricos) da necessidade de um imposto sobre as grandes fortunas? “O problema são as diferentes motivações em cada país, motivações que se opõem a um acordo mundial. No pós-guerra isso foi possível porque era necessário um pacto mínimo para reconstruir o mundo. Thomas Piketty tem toda clareza de que a solução não é simples. Mas ele aponta saídas”, conclui Manzano.

No Brasil, historicamente, as elites financeiras e agrárias são pouco tributadas. De acordo com Marcelo Manzano, entre as 20 maiores economias do mundo, o Brasil é que tem a menor alíquota de imposto de renda. Repetidos estudos do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) mostram que, no Brasil, os mais pobres gastam mais do que os ricos com o pagamento de tributos. Enquanto os 10% mais ricos repassam 22% de seus recursos para pagar impostos, os mais pobres repassam 32,8% para o governo. E, se pensarmos que os ricos têm acesso a serviços de melhor qualidade como educação e saúde, esse dado se torna ainda mais grave. Além disso, como no Brasil a maior parte da arrecadação vem da tributação sobre consumo, quem paga mais impostos proporcionalmente são os mais pobres.

INVISIBILIDADE

O Imposto Sobre Grandes Fortunas (IGF) foi previsto na Constituição de 1988, mas não foi regulamentado e existem outros projetos com o mesmo tema parados no Congresso Nacional. Em um país em que a classe política se confunde com a elite, é difícil imaginar que um imposto como esse se torne realidade. No #Protestos: análises das ciências sociais (2014) o sociólogo David Cattani faz uma análise sobre as manifestações de junho de 2013 no Brasil e afirma que os segmentos empresariais compõem a classe social mais poderosa e organizada do país. “Eles detêm os principais meios de produção, têm capacidade de incidir fortemente na condução da política econômica e nos projetos governamentais, além de estarem estreitamente articulados com a grande mídia, alimentando-a com recursos financeiros e conteúdos específicos”.

Para Cattani, “superada a perplexidade inicial, representantes do grande capital interpretaram a gramática dos protestos como justificativa para reforçar a litania neoliberal”, que defende ardentemente a redução da carga tributária. E essa interpretação acabou minimizando ou suprimindo esse conteúdo que estava presente nos protestos. “As grandes faixas do Bloco de Lutas nas quais estava escrito ‘Que os ricos paguem a conta’, ‘Passe Livre: os ricos vão pagar’ passaram pelo Photoshop e não ilustraram nenhuma reportagem da grande mídia e tão pouco foram consideradas por empresários e comentaristas econômicos”, afirmou o pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). Cattani lembra ainda que, no auge dos protestos de junho de 2013, o líder do PT no Congresso, o deputado José Guimarães (CE), relançou a proposta do imposto sobre as grandes fortunas. No entanto, a reação do meio empresarial, expressa em diversos veículos da mídia, foi desacreditar o projeto, vinculando-o à corrupção no governo.

Para Cattani, o destaque dado pelo grande mídia ao “impostômetro”, criado pela Associação Comercial de São Paulo, é outro sintoma do poder das elites brasileiras de disseminar conteúdos e defender seu ponto de vista. Entretanto, poucos conhecem o “sonegômetro”, criado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz). Em entrevista para o jornal Folha de S. Paulo, em agosto deste ano, o presidente da Sinprofaz, Heráclio Camargo, afirmou que a sonegação de impostos deve alcançar os R$ 500 bilhões esse ano. “Se os grandes contribuintes (pessoa física e jurídica) pagassem corretamente seus impostos, a carga tributária poderia cair significativamente, o que representaria um passo importante na direção da justiça social”, finaliza David Cattani.

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