Os dilemas da economia passam pela política

Para Marcio Pochmann, falência do sistema político herdado da ditadura militar e a relação Estado-mercado são questões que precisam ser enfrentadas pelo país

Por Glauco Faria | Publicado originalmente pela revista Forum 

“Estamos muito prisioneiros da perspectiva de ‘curto-prazismo’”. O diagnóstico do economista e presidente da Fundação Perseu Abramo Marcio Pochmann diz respeito à forma como se analisa a economia brasileira atualmente, um tipo de avaliação que pode gerar interpretações que ele considera equivocadas. “Claro que isso diz respeito a uma lógica do mercado financeiro, que tem que tomar decisões de curtíssimo prazo, mas, do ponto de vista de um país, de uma análise acerca da sua economia, é preciso considerar aspectos de maior amplitude”, afirma.

Para Pochmann, a presidenta Dilma Rousseff (PT) enfrenta um cenário complicado não somente por conta da crise econômica, mas pela falência do sistema político atual e a relação Estado-mercado, duas questões que deixaram de ser enfrentadas no processo de redemocratização do país. “O sistema político, herdeiro da ditadura, não permite uma conexão decente entre o conjunto da população e seus representantes. Não estou dizendo que são representantes ilegais, mas há uma desconexão. O resultado eleitoral de 2014 mostrou uma coisa estranha: como um país que tem 86% da sua população morando nas cidades tem a maior bancada do Legislativo formada por ruralistas?”, questiona.

Outro ponto que ele considera crucial para 2015 é a necessidade de se separar os crimes cometidos por dirigentes de empresas de suas atividades. “O Ministério Público, imbuído de boas intenções, quer implantar no Brasil o silêncio dos cemitérios. No cemitério tem silêncio, mas não tem vida. Se você entender que o problema da corrupção é das empresas e não de seus dirigentes pode, na verdade, liquidar uma parte significativa da engenharia nacional”, acredita.

Pochmann analisa também o significado das manifestações ocorridas nos dias 13 e 15 de março, que também foram objeto de pesquisa da Fundação Perseu Abramo. “São naturezas distintas de mobilização e expressão. A manifestação da sexta-feira foi organizada por instituições tradicionais, os sindicatos. Embora houvesse movimentos populares, estudantis, são instituições que estão aí há quanto tempo? Já a outra é uma expressão do que as tecnologias de informação nos permitem, que é o engajamento pontual. As pessoas que vão em uma manifestação em um dia não vão necessariamente em outro, não existe um contínuo”, avalia.

Confira a seguir a íntegra da entrevista.

Fórum – Em relação à situação econômica atual, a presidenta Dilma diz que a causa da crise é conjuntural, derivada de fatores externos, e alguns economistas dizem que, na verdade, ela seria estrutural. O cenário é fruto mais de uma questão conjuntural, estrutural, ou essa é uma análise que não pode ser feita nesses termos?

Marcio Pochmann – Parto do pressuposto que o debate sobre a economia política brasileira está mal posto. Estamos muito prisioneiros da perspectiva de “curto-prazismo”, de olhar se a inflação desse mês é maior que a passada, o mesmo com a questão dos empregos, dos salários, de uma maneira geral. Claro que isso diz respeito a uma lógica do mercado financeiro, que tem que tomar decisões de curtíssimo prazo, mas, do ponto de vista de um país, de uma análise acerca da sua economia, é preciso considerar aspectos de maior amplitude.

Particularmente, entendo que a estratégia de buscar o desenvolvimento do capitalismo brasileiro introduzido com o presidente Lula em 2003, e que teve continuidade com a presidenta Dilma, foi de se apoiar no mercado externo – àquela época em um grande momento, estimulado pela China –, formando-se uma proteção em relação ao caráter especulativo do capitalismo internacional por meio da criação das reservas, aproveitando o saldo comercial para liquidar o problema da dívida externa, algo que nos aprisionava. Foram praticamente duas décadas transferindo entre 5% e 6% do PIB para pagamento desta dívida. Ao mesmo tempo em que a estratégia se apoiava no mercado externo, buscou-se uma expansão do mercado interno sustentada na distribuição de renda, um fato inédito no capitalismo brasileiro nos últimos 50 anos, já que nunca tínhamos tido a capacidade de combinar democracia, crescimento econômico e distribuição de renda. Nos anos 1960 o crescimento foi muito mais vigoroso, inclusive, mas dado o autoritarismo vigente não distribuímos o que conseguimos expandir do ponto de vista das forças produtivas do capitalismo. Tanto que tivemos no início dos anos 1980 o Brasil como oitava economia, mas como o terceiro país mais desigual do mundo.

Nos anos 1980 e 1990, tivemos a retomada da democracia, mas não do crescimento, então não tínhamos o que distribuir. Foram décadas ruins porque de certa maneira houve uma regressão econômica e social, o país caiu para 13ª economia mundial no ano 2000.

Essa estratégia adotada pelos governos Lula/Dilma teria fôlego longo, inclusive, porque com o PAC introduzido em 2006 buscava-se instaurar um ciclo de expansão por meio de investimento, mas isto foi interrompido por conta da crise de 2008. Não foi apenas uma crise que alguns diziam ser em “V”, com uma queda na atividade que depois volta a se recuperar. A crise de dimensão global iniciada em 2008 estabeleceu um novo regime possível de expansão das economias capitalistas, que é um regime de expansão muito menor do que o verificado antes daquele ano.

Se você fizer uma comparação dos países mais relevantes economicamente do período de 2008 a 2014 com a variação média anual entre 2000 e 2007, vai perceber que os países estão crescendo muito menos. Os Estados Unidos estão crescendo 30% do que cresciam antes de 2008; a Europa praticamente não está crescendo, está estagnada, o Brasil cresce 45% do que crescia antes; a China, 75%, o melhor desempenho vem sendo da Índia, com 83%, 84%. A crise de dimensão global estabeleceu um novo regime de expansão possível que é de baixíssimo crescimento. Todos os países decresceram.

O Brasil, que havia constituído o PAC como a possibilidade de se fazer a ampliação de investimentos, teve que utilizá-lo não mais com essa finalidade mas sim no âmbito das políticas anticíclicas, usando-se o fundo público com o objetivo de evitar que os efeitos dessa crise e, depois de 2011/2012, que os efeitos do baixo dinamismo econômico viessem a ser transferidos para os mais pobres. Mesmo os Estados Unidos, que cresceram em torno de 13% acumuladamente de 2008 pra cá, teve um desempenho do mercado acionário que cresceu 150%; os lucros empresariais aumentaram 50%, e a renda média dos trabalhadores decaiu 3%. Ou seja, a crise estabeleceu um regime de menor crescimento e, quando o país cresce, os efeitos se dão de forma concentrada.

O que aconteceu é que o governo brasileiro, na expectativa de que a crise estabelecesse uma possibilidade de voltar a crescer como anteriormente, adotou políticas anticíclicas evitando que os efeitos recaíssem sobre os mais pobres. Mesmo tendo crescido menos, que é o caso do período de 2011 pra cá, os pobres praticamente não foram atingidos, continuou caindo a taxa de pobreza, os salários subiram acima da inflação e não houve aumento do desemprego.

Mas a presidenta Dilma se deu conta de que não seria mais suficiente manter essas políticas de caráter anticíclico por mais tempo porque a crise não vai viabilizar no curto prazo a retomada do crescimento, e nós temos que trabalhar com esse horizonte. Dentro desse quadro que vem de fora, a meu modo de ver, há uma tentativa de se reorganizar. O que é essa reorganização? Acredito que há uma leitura equivocada, de maneira geral, das ações da presidenta que, antes de tomar as decisões, tem acesso a muitas informações que nem sempre a gente tem. A impressão que tenho é que ela optou, em primeiro lugar, por tentar reorientar o eixo da economia, e mudar o centro político.

Não sei se isso vai ser suficiente ou viável, há uma série de reações. Mas essa mudança de centro político é importante, pois o início do segundo governo da presidenta se dá diante de dois esteios que estão se esfarelando. Eles já eram frágeis e conhecidos de seus antecessores, que nunca os enfrentaram, e são herança da ditadura militar, nunca confrontada pela transição democrática. Trata-se da falência do sistema político atual, que, de certa maneira, é uma herança do Golbery, da maneira com que a ditadura preparou a transição do autoritarismo. Está ali, não foi mexido. Tem gerado desconexões que vêm desde o Sarney. Embora ele [Sarney] tenha sido ungido pelo PMDB, que em 1986 teve vitórias nas eleições para governador em todos os estados menos um, não conseguia governar só com o partido, teve que fazer um “Centrão”.

O sistema político, herdeiro da ditadura, não permite uma conexão decente entre o conjunto da população e seus representantes. Não estou dizendo que são representantes ilegais, mas há uma desconexão. O resultado eleitoral de 2014 mostrou uma coisa estranha: como um país que tem 86% da sua população morando nas cidades tem a maior bancada do Legislativo formada por ruralistas? É desproporcional. É impossível que uma população urbana eleja representantes do mundo rural, que correspondem a 7% do PIB.

Fórum – Existem dois dados interessantes da pesquisa publicada pela Fundação Perseu Abramo a respeito das duas manifestações, dos dias 13 e 15 de março, mostrando que em ambas a maioria é a favor da adoção de crianças por casais homoafetivos e contra a prisão da mulher que faz aborto, no sentido contrário de parte do Congresso Nacional…

Pochmann – Isso vem ganhando cada vez maior expressão, a bancada evangélica tem a segunda maior bancada, tem a bancada da bola… A sociedade brasileira é formada por mais de metade de mulheres, que não têm representação, assim como os negros. Grande parte da população é composta de jovens, que também não são representados. Os empresários, que segundo o IBGE representam 3,6% da estrutura ocupacional, no Legislativo representam 40%. Alguma coisa está errada.

Como o Executivo ganha a eleição e os partidos que o apoiam não lhes dão maioria? Isso fica mais claro ainda quando se verifica que a cada eleição há menos representantes populares, porque a eleição se transformou em um grande negócio no qual o poder econômico tem maior expressão. Esse sistema está falido. Nunca tivemos, a não ser na crise de 1992 com o Collor, uma credibilidade de todos os partidos políticos tão baixa. E isso é profundamente preocupante em um país com tão pouca tradição democrática.

O segundo esteio que está fragilizado e que vem da ditadura, não sendo fato novo, é a relação entre Estado e mercado comprometida. O Brasil começou a constituir grandes empresas do setor privado no governo Juscelino Kubitschek, que trouxe as grandes companhias privadas, as montadoras, mas que também, na construção de Brasília, abriu a oportunidade de se criarem as grandes construtoras, com a formação do grande empresariado da construção civil, grupos familiares etc. Na ditadura militar isso ganhou mais expressão com a Transamazônica, Ponte Rio-Niterói, para citar alguns exemplos, havendo uma simbiose na relação entre o Estado e o mercado. E a democracia não mexeu nisso.

O que se percebe hoje são relações completamente contaminadas entre o Estado e o mercado. O processo licitatório atualmente é infelizmente contaminado por esquemas. Em todos os níveis, municipal, estadual e federal. É uma bobagem querer focar no plano federal. Óbvio, as somas são maiores, mas se for feito um levantamento vai se perceber que existem coisas estranhas em todas as instâncias e isso é na educação, na saúde, nos transportes, na definição de tarifas nas cidades…

Há uma falência desse modelo de capitalismo que vem consolidado da ditadura e em que a democracia não mexeu. E agora se chegou a uma situação calamitosa que precisa ser enfrentada. E como se enfrenta isso? Há um descontentamento generalizado em relação à questão da corrupção, por exemplo, mesmo se sabendo que não é um fato novo e que foi feito um conjunto grande de iniciativas que certamente constrangeu a possibilidade de haver mais corrupção, mas ela está aí. Como se enfrenta isso, como se muda o sistema político, como se muda a relação Estado-mercado? Não tem saída simples.

Tenho a percepção de que estamos chegando no ponto ótimo da crise. Obviamente não é mais possível empurrar com a barriga, terão que ser tomadas medidas difíceis. E medidas difíceis obviamente impõem riscos.

Fórum – Em relação à questão da corrupção. Nessa relação Estado-mercado, a impressão que se tem, pela cobertura da mídia tradicional e de parte da opinião pública, é que a corrupção é fruto quase exclusivo do Estado. Por que a participação do mercado, das grandes companhias, é tão pouco abordada?

Pochmann – Em primeiro lugar porque não temos fiscalização sobre as atividades privadas, não há essa informação. Imagino que a corrupção seja igual ou maior no setor privado em relação ao setor público, nenhuma empresa faz questão de divulgar que detectou um processo ilícito em sua contabilidade. São pouquíssimos, raríssimos os casos de corrupção do setor privado que são divulgados e conhecidos. Também tem mais expressão a corrupção no setor público por serem recursos dos contribuintes.

É claro também que há uma opção das coberturas. Nós temos o funk ostentação e teremos a “corrupção ostentação”, isso vai dominando o noticiário e dando a impressão que o Brasil é um país corrupto. Levantamentos idôneos feitos por instituições mostram que o país tem esse problema, mas não é nada exacerbado. Aliás, comparado com os chamados Brics – Rússia, China, Índia, África do Sul –, o Brasil tem menos. Claro que é um problema que tem que ser enfrentado, mas infelizmente vai sempre haver se não houver fiscalização, monitoramento, prisão, enfim. O que a legislação estabeleceu, e acho que temos nos aperfeiçoado nisso, é permitir pela primeira vez identificar não apenas o corrupto mas o corruptor. É um avanço inegável.

Obviamente isso se tornou um tema político, a direita no Brasil se realinhou à direita latino-americana. Se o PT, junto com seus partidos coligados, conseguiu vencer as eleições de 2014, a partir do encerramento do processo eleitoral a oposição vem ganhando todas. Por quê? Porque mudou a natureza da direita que, no Brasil, tinha uma postura à la europeia, ou seja, fazia o embate, a tensão no período eleitoral e, uma vez encerrada a eleição, tanto os vitoriosos como os derrotados encerravam ali a campanha e o partido vitorioso teria seis, oito meses para implantar o seu plano de governo e então sofrer críticas, avaliações, o que é natural.

Mas a direita latino-americana, com o encerramento dos governos pós-neoliberais, passou a fazer um processo de oposição permanente, usando todos os meios para isso. Algo que não era identificável no Brasil, mas não há dúvida que, quando se encerrou a eleição passada, a direita não se desorganizou, não se desfez da sua máquina eleitoral. Quem se desorganizou foram os vitoriosos, achando que ali havia se encerrado o processo eleitoral. Mas ele continua. A oposição vem ganhando as batalhas porque se manteve organizada e passou a entender que estamos diante de um novo processo político nacional. Somente agora, ao que parece, tanto o PT como os partidos da base entenderam que precisam se reorganizar novamente, porque as eleições infelizmente não se encerraram. Hoje é um procedimento novo, se você observar, a direita brasileira está se comportando assim, mas a venezuelana age dessa maneira, na Bolívia, no Equador, na Argentina também operam desta forma.

Isso tem permitido essa vitória recorrente sobre o governo, que venceu a eleição e entrou em uma fase de formação, que é tensa, divide, separa, porque se escolhe um e não outro. O governo se fragmentou na escolha de seus ministros, na ocupação de cargos. Depois se fragmentou ainda mais na definição dos dirigentes do Legislativo, e a oposição se manteve unida, articulada, e atuando de forma muito sistêmica. Criou-se um quadro estranho porque que quem venceu a eleição aparece como fracassado e quem perdeu sai como vitorioso.

Fórum – Mas nesse período que vai do fim da eleição até a formação do governo e as primeiras medidas não existe uma falta de interlocução com a esquerda, que foi fundamental no segundo turno? Houve medidas de austeridade econômica, foram alteradas regras do seguro-desemprego, o próprio ministro Joaquim Levy criticou a política econômica anterior, e não houve qualquer aceno à esquerda nesses primeiros meses.

Pochmann – Dado esse contexto em que a presidenta precisou formar seu governo, a relação entre Estado e mercado, os limites que foram se estabelecendo, os obstáculos vindos do exterior que mostram não ser possível crescer a uma taxa razoável, ela, na verdade, fez concessões. Obviamente essas concessões foram estabelecidas em um horizonte de quatro anos, o que apareceu agora foram medidas que mexem muito mais na sua base do que com aqueles que não votaram nela. O que não é uma tática diferente do que o presidente Lula fez em 2003. É verdade que ele, ao assinar a Carta aos Brasileiros, já dava indicação de que tomaria algumas decisões que poderiam contrariar expectativas.

Não identifico, nas medidas tomadas até agora, que Dilma esteja pondo em prática o programa da oposição. Do ponto de vista da questão fiscal, isso foi recorrente no governo Lula, sempre houve superávit. Essa concessão foi estabelecida, nunca mudamos o tripé da política macroeconômica. Podemos julgar se foi correto ou incorreto, mas, na verdade, foi uma ação gradual. O presidente Lula, por exemplo, quando assumiu elevou a taxa de juros, mas olhando a longo prazo a taxa de juros caiu.

Não foram governos de choque, mas governos de ações graduais. Quem se propôs a fazer uma política de choque foi a oposição, seja pela Marina, seja pelo Aécio, que inclusive anunciava que diante do caos da economia teria de fazer um superávit primário de 3,5% a 4,5% do PIB. Quero lembrar que no último ano do primeiro governo Dilma foi enviada uma proposta orçamentária cujo superávit primário era de 2,5% do PIB, claro, uma estimativa baseada no fato de que a economia iria crescer em 2014. E foi reprogramado para um superávit de 1,2%, um dos menores que tivemos em termos de meta.

Na semana passada, o Armínio Fraga, que seria ministro da Fazenda do Aécio, deu uma entrevista dizendo que o ajuste era “fraquinho”. É preciso ter clareza, senão misturamos as coisas, os governos do PT têm um certo compromisso com a questão fiscal, há uma ação nesse sentido, mas não a vejo como uma aplicação do programa da oposição.

Concordo que há um certo desequilíbrio na apresentação das propostas que se deram mais do ponto de vista da aliança capital-trabalho do que em relação a outros setores que não pagam impostos, são improdutivos… Mas aí é uma opção da presidenta e talvez isto até justifique ela estar mal avaliada, porque as escolhas que fez para buscar uma recuperação da economia se deram de forma unilateral.

Fórum – Sem diálogo.

Pochmann – Essa é uma marca da presidenta, ela não faz muito diálogo. Quando tomou medidas como baixar taxas de juros, promover desonerações, nunca fez nada dialogado, é uma característica dela. Mesmo quando fez coisas boas para a população, não reuniu as pessoas, é uma postura diferente da do presidente Lula, a gente cobra dela o que é muito comum nele, mas são características diferentes. Não acredito que isso possa ser imputado como uma postura autoritária. Podemos julgar se é errado, correto, mas a avaliação do ponto de vista do desempenho, de como se faz política, é que ela faz política de uma forma diferente.

Fórum – Em relação à taxa de juros, houve uma tendência longa de queda nos dois primeiros anos da primeira gestão da presidenta e havia uma perspectiva de chegar a um outro patamar, mas essa curva acabou se revertendo e voltou a subir. O que deu errado naquele momento?

Pochmann – A taxa de câmbio no Brasil é uma expressão da baixa autonomia que o país tem de fixar política monetária. Isso tem a ver com o ajuste que os Estados Unidos imprimiram no final dos anos 1970 com o Paul Volker, de tentar recuperar a diplomacia do dólar. Na verdade, os países perderam a capacidade de fazer política monetária, fazem sempre olhando para os EUA. Se eles sobem a taxa de juros, então têm que subir porque senão corre-se o risco do dinheiro sair daqui e ir pra lá.

A taxa de câmbio acaba refletindo a contabilidade do país em relação ao mundo. Foi possível reduzir a taxa de juros de forma mais intensa em 2011, 2012, porque nossas contas externas estavam boas, tinha-se acesso a fluxos financeiros internacionais, nossas exportações estavam relativamente bem, usava-se ali as taxas de juros muito mais para evitar um possível problema de inflação de demanda do que qualquer outra coisa. No entanto, nesses dois últimos anos, em 2013 e 2014, há uma alteração da relação do Brasil com o mundo porque passamos a operar com déficit na conta de capital. Tivemos um déficit de mais de 4% do PIB, isso hoje em dia é algo ao redor dos US$ 100 bilhões.

O Brasil não fecha suas contas se não houver ingresso de capital pra cá. Ao meu juízo, as decisões sobre taxas de juros do Banco Central têm muito mais a ver com essa questão de atrair recursos, você tem que operar com a taxa de juros acima dos demais países para que o Brasil continue a ser interessante para o capital especulativo, para fechar a conta de capital. Muito mais do que problema de inflação, já que hoje temos inflação vinculada a preços administrados que agora foram liberados, não tem efeito, não são os preços competitivos que estão pressionando a inflação. Nós temos um déficit comercial e na conta de serviços porque ainda tem muito dinheiro saindo em função de turismo e pagamento de serviços. A impressão que tenho é que a taxa de juros está sendo definida mais em função da balança de pagamentos do que pelo comportamento da inflação.

Fórum – Dentro desse cenário, a valorização do dólar perante o real pode ter um efeito positivo na balança.

Pochmann – Nós aumentamos em um prazo muito pequeno a taxa de juros e tivemos uma desvalorização de nossa moeda. Isso normalmente não acontece assim, com a taxa de juros alta se atrai muito dinheiro por causa das possibilidades de ganho especulativo, e ao trazer mais dinheiro de fora, em tese sua moeda se apreciaria. E tivemos o contrário, uma desvalorização da moeda. A taxa de juros evitou que ela fosse mais intensa ainda.

A desvalorização, a meu ver, é positiva, trata-se da mudança de eixo da economia. A Dilma está praticando uma desvalorização da nossa moeda com o objetivo de proteger nosso mercado interno e de fazer avançar as exportações. A estrutura produtiva que temos hoje, dado o coeficiente de importação, dado o período anterior de valorização cambial, qualquer crescimento que se tenha aqui “vaza” para o exterior. O aumento de salários vai corresponder à compra, essa compra vai ser realizada internamente, mas grande parte dessa produção interna vem de importações. Então crescemos dependendo cada vez mais dos importados.

Há uma mudança do eixo econômico que, de certa maneira, buscar centralizar mais no mercado interno e forçar as empresas a fazerem substituição de importações.

Fórum – Os efeitos dessa mudança de eixo demorariam quanto tempo para serem visíveis?

Pochmann – A desvalorização cambial tende a ter um efeito bastante razoável nas exportações, mas isso depende também do comportamento da economia internacional. Hoje os países são muito mais agressivos, acredito que isso pode comprometer um ano, um ano e meio.

Fórum – Há uma crítica recorrente em relação ao planejamento do governo no tocante ao setor industrial. Houve o que poderíamos chamar de descuido nessa área?

Pochmann – A discussão industrial no Brasil é bem complexa. Não há dúvida de que a indústria perdeu participação no PIB nacional, que era algo em torno de um terço e caiu para 12%. Ainda que essa queda em parte esteja associada ao processo de terceirização que ocorreu na década de 1980, todos os serviços estavam dentro da indústria e depois eles saíram, passando-se a contar apenas o que ficou. Não sei se caiu de forma tão expressiva como os números frios apresentam. São comparações inadequadas.

Ao mesmo tempo, há estados, como é o caso de São Paulo, por exemplo, onde ocorreu uma desindustrialização enorme. Mas há outros em que aumentou a indústria como no Nordeste e no Centro-Oeste. No quadro geral há uma redução do peso da indústria com estados que diminuíram e outros que aumentaram.

De toda maneira, o que está havendo no capitalismo é um deslocamento da produção de manufatura do Ocidente para o Oriente. É difícil ter um país no Ocidente que não tenha perdido participação da sua indústria. Fora isso, perdemos porque fizemos opções ao ter colocado o combate à inflação como uma função-fim do Estado. Os anos 1990 foram os piores do ponto de vista da desindustrialização, quando houve a pior queda, mas de 1995 tem sido uma constante a valorização cambial, que é um mal para o setor produtivo, não permite a ele competir. A presidenta Dilma tomou uma decisão dura que é usar o câmbio como tentativa de forçar a defesa do parque produtivo que temos hoje.

Esse movimento de desindustrialização também foi contaminando a própria burguesia industrial. Conversando com gente vinculada à direção das indústrias em São Paulo, perguntei, em 2012: “Por que vocês estão reclamando tanto da Dilma se ela teria atendido em parte o que vocês pediram, desvalorizou a moeda, reduziu os juros, promoveu desoneração…”. E me responderam: “É, ela nos atendeu, mas isso não foi muito bom. Uma parte do faturamento das indústrias vem do setor financeiro, quando reduz a taxa de juros, nós perdemos dinheiro no banco”. É um setor contaminado pela lógica financeira. E continuaram, sobre a desvalorização cambial. “De um lado ela é boa, porque nos incentiva a exportar, mas, por outro lado, nós que somos grandes importadores, compramos dos fornecedores de fora, com a desvalorização aumentou nossos custos. Então não gostamos.”

Não é um problema da burguesia industrial brasileira. O Obama, quando iniciou o seu governo, fez uma proposta de reindustrialização dos Estados Unidos. Não teve sucesso. A maior oposição foi dos próprios industriais americanos que preferiram manter sua produção fora do país. Não quero isentar o governo das falhas, mas não é só ele.

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