Os direitos das trabalhadoras domésticas e as dificuldades de implementação no Brasil: contradições e tensões sociais*

Magda Barros Biavaschi**

Ociosa, mas alargada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar suas ordens aos negros.. [Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala].

O Jornal Folha de São Paulo de 30 de março de 2014, domingo, no caderno Ilustríssima, publicou matéria assinada por Samy Adghirni , Realidade velada: o que podem e o que não podem as mulheres do Irã, mostrando, em síntese, a história das mulheres daquele país marcada por avanços e retrocessos na vida pública e privada. Segundo o autor, a população feminina da Irã, ainda que escolarizada e com acesso relativo a diferentes setores profissionais e da política, continua sendo discriminada em termos culturais, jurídicos e financeiros.

Provocada pelas contradições que a matéria estampa, busquei relacionar aquela realidade com a do Brasil, quarto país do hemisfério ocidental em que as mulheres conquistaram, em 1932, o direito ao voto e, em meio ao processo de industrialização, os de obterem carteira de trabalho e de postularem perante as recém-criadas Juntas de Conciliação e Julgamento a reparação dos direitos trabalhistas lesados, independentemente da autorização do marido. Autorização, aliás, exigência do Código Civil de 1916. E ao relacionar alguns dos aspectos das contradições no Irã com o tema deste texto, que aborda o processo de inserção das trabalhadoras domésticas [o artigo deliberadamente faz esse corte] ao campo de proteção da Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, deparei-me com aparente paradoxo: apesar dos avanços obtidos pelas mulheres brasileiras, profundas têm sido as dificuldades de inserção das empregadas domésticas a esse campo de proteção, conquistado em 1932 pelas trabalhadoras da indústria e do comércio e incorporado pela CLT em 1943. Daí o título deste artigo: “contradições e tensões sociais”

A história brasileira mostra duas realidades contraditórias em relação ao objeto deste artigo: a conquista do direito ao voto feminino e de um sistema de proteção paradigmático pelas trabalhadoras da indústria e do comércio par i passu ao processo de industrialização e modernização do País que se deu entre as décadas de 1930 e de 1980, culminando com a Constituição de 1988; e, por outro lado, a total insuficiencia de proteção às trabalhadoras domésticas, relegadas a uma situação comparável àquela dos escravos, com precária proteção social e sem que os princípios constitucionais do valor social do trabalho e da dignidade humana se concretizem no mundo da vida concreta.

Inicia-se com algumas considerações sobre o contexto social e econômico brasileiro e sobre a resistente herança escravocrata. Na sequência, destaca-se a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho, OIT, e sua Recomendação 201, versando sobre equiparação dos direitos das trabalhadoras domésticas, tecendo-se breves considerações a respeito. Depois, com uma lente de longa duração, aborda-se o processo de positivação das normas de proteção social ao trabalho da mulher na década de 1930, situação que se contrapõe à ausência de disposições sobre as trabalhadoras domésticas, aliás, excluídas do campo de abrangência da CLT.

A seguir, olhando-se para a Constituição Federal de 1988 e para o sentido do parágrafo único do seu artigo 7º, sublinham-se as dificuldades que têm sido colocadas para que esse dispositivo receba interpretação mais ampla, abordando-se, com tal pano de fundo, certas decisões judiciais.

Nessa démarche, chega-se à Emenda Constitucional nº 72. Essa Emenda decorreu da Proposta de Ementa à Constituição, PEC nº 487, depois PEC nº 66, a “PEC das Domésticas”, aprovada pelo Senado Federal em 26 de março de 2013 que, forte no princípio constitucional da não discriminação, buscou equiparar, em direitos, as empregadas domésticas aos demais trabalhadores, comentando-se sobre as reais dificuldades que essa PEC vem enfrentando para ser regulamentada pelo Parlamento brasileiro. Nas considerações finais, são retomados alguns dos principais aspectos abordados no decorrer no texto, lançando-se algumas questões ao debate em torno do tema.

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* – Estudo elaborado no âmbito do Projeto “Fortalecimento político das mulheres para garantir e ampliar direitos, promover a igualdade no mundo do trabalho e a autonomia econômica”, referente ao convenio 788202/2013m cin a SPM-PR, projeto que conta com parceria da SNMT/CUT e Friedrich Ebert Stiftung.

** – Desembargadora aposentada do TRT4, Doutora e Pós-Doutora em Economia Social do Trabalho pelo IE/UNICAMP, Pesquisadora e Professora Colaboradora no CESIT/IE/UNICAMP.