A crise de 2008 impôs sofrimento, pobreza e destruiu 60 milhões de empregos. Em 2009, governos gastaram US$ 11 trilhões para evitar prejuízos a bancos. E em breve 1% da população do mundo terá mais recursos do que os outros 99%
Marcio Pochmann* | Publicado originalmente na Rede Brasil Atual
Entre 28 e 29 de janeiro, a cidade de São José, capital da Costa Rica, reuniu a terceira cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), cujo tema principal foi a luta contra a pobreza. Coincidentemente para os mesmos dias, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) divulgou relatório informando que a pobreza na região permanece estagnada em 28,1% da população desde 2012, após mais de uma década de redução acentuada.
No ano passado, 167 milhões de latino-americanos e caribenhos encontravam-se na situação de pobreza. Para o caso brasileiro, a pobreza teria caído de 18,6% para 18% da população nos últimos dois anos, segundo a Cepal.
Neste contexto, convém lembrar que uma das principais evidências recentes do processo assimétrico da globalização tem sido o crescimento do poder do setor privado, por meio das grandes corporações transnacionais e dos novos ricos de classe mundial. Segundo estudo da Oxfam divulgado recentemente, o mundo deverá entra em 2016 com 1% mais rico da população do planeta, estimado em 37 milhões de pessoas, concentrando mais dinheiro do que os outros 99% juntos dos habitantes da terra.
Essa brutal centralização do capital por intermédio das grandes corporações financeiras e não financeiras decorre de suas operações cada vez mais de dimensões globais frente a sistemas de regulações públicas, quase que exclusivamente locais, em conformidade com as normatizações originárias do contexto mundial do segundo pós-guerra mundial. Ademais, o predomínio das políticas neoliberais levou ao apequenamento do papel do Estado nacional que ocorreu paralelamente ao crescimento do poder da grande corporação transnacional e à diminuição da governança pública mundial representada pelo sistema das Nações Unidas constituído desde o segundo pós-guerra (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, entre outras).
A crise econômica de dimensão global desde 2008 recolocou novamente em questão as exigências de um novo sistema de regulação mundial, pois do contrário, os riscos de crises permanecem acompanhados de diferenciação ampliada das assimetrias nos poderes políticos, econômicos, financeiras, sociais. Um bom exemplo disso parece ser a problemática da pobreza mundial, que segue descolada de uma intervenção pública sistêmica e eficiente em todos os países.
Nas nações que mais proliferaram as políticas neoliberais constatam-se os piores desempenhos nos indicadores sociais no mundo. A experiência de países ricos como Estados Unidos e Inglaterra serve de exemplo.
De outra parte, os países asiáticos que pouco tomaram conhecimento do ideário proveniente do Consenso de Washington, evidenciam resultados positivos em termos de crescimento econômico e redução da pobreza, com resultados importantes na diminuição na desigualdade de repartição da renda e riqueza. Entre os anos de 1981 e 2005, por exemplo, o mundo libertou 520 milhões de pessoas da condição de extrema pobreza (rendimento mensal individual de até US$ 37,50), ainda que tenham sido poucas regiões responsáveis por esse acontecimento. A queda de 27,4% na quantidade de pessoas extremamente pobres no mundo ocorreu com ascensão econômica de 755,3 milhões de indivíduos no Leste Asiático e Pacífico e de 2,7 milhões do Oriente Médio e África do Norte (menos 2,7 milhões de pessoas).
E a força da emergência da China no combate à pobreza mundial foi responsável pela saída de 627,4 milhões de pessoas da condição de pobreza extrema entre 1981 e 2005.
No mesmo período de tempo, as demais regiões do mundo terminaram por ampliar o número de pobres, como nos casos da África Subsaariana (176,9 milhões de pessoas), do Sul da Ásia (47,3 milhões), da Europa do Leste e Ásia Central (10,2 milhões) e da América Latina e Caribe (4,1 milhões).
Para o ano de 2015, cerca de 216 milhões de pessoas deverão ser resgatadas da pobreza extrema. Mas isso dependerá fundamentalmente das ações do governo chinês. A cada três pessoas a emergir da condição da miséria, duas tenderão a ser chinesas.
No ano de 1981, por exemplo, o mundo tinha a cada dois pobres, um residindo na China. Em 2015, poderá ser um chinês a cada13 pobres no mundo. Em compensação, a agregação dos países do sul da Ásia e Índia com os da África Subsaariana, que em 1981 respondiam por 40% da miséria mundial, poderão concentrar mais de 80% da pobreza extrema.
A alteração dessa tendência social é possível. Porém, depende fundamentalmente tanto da reestruturação da governança mundial como do reposicionamento dos países em torno de um novo padrão de regulação do poder das grandes corporações globais. Um bom começo para isso seria a introdução da taxação sobre os fluxos financeiros globais. Isso porque, segundo o Banco de Compensações Internacionais (BIS), as transações financeiras mundiais que foram multiplicadas por 100 durante as últimas três décadas, equivalem nos dias de hoje US$ 777,5 trilhões.
Essa impressionante transformação nas fontes de riqueza decorrente da globalização desregulada possibilitaria constituir em inovadora base do fundo público mundial de combate à pobreza e desigualdade social. A introdução de uma alíquota de apenas e tão somente 0,005% sobre os fluxos financeiros internacionais proporcionaria anualmente a soma de algo próximo de US$ 35 bilhões ao ano.
Pela captura desses recursos adicionais, o combate à pobreza se faria mais efetivo e sistêmico, sobretudo em regiões africanas e no sul da Ásia que a falta de recursos nacionais impedira, inclusive o cumprimento da meta do milênio definido por praticamente todos os países no âmbito das Nações Unidas. Sobre isso, aliás, a iniciativa Ação Global contra a Fome e a Pobreza, lançada pela própria Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 2004, tentava impedir que o déficit anual de 50 bilhões de dólares ao ano pudesse impedir o cumprimento das metas do milênio, por intermédio dos impostos sobre passagens aéreas pudesse viabilizar a compra pública de remédios para o combate de HIV, malária o tuberculose pudesse ocorrer. O resultado foi o surgimento da Unitaid, organização criada em 2006 para financiar medicamentos e diagnósticos para o combate a essas doenças em países extremamente pobres no mundo.
A crise internacional de 2008 vem impondo maior sofrimento humano, com a destruição de mais de 60 milhões de postos de trabalho e a injeção de outros tantos milhões de pessoas na condição de pobreza. Para evitar maiores prejuízos a bancos e grande empresas não financeiras, mais de US$ 11 trilhões foram despendidos pelos governos em 2009. A luta contra a pobreza e a fome não podem parar, tendo na taxação dos fluxos internacionais uma contribuição imprescindível.
* – Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.