Saúde e Segurança do Trabalho no Brasil

Quando iniciamos os debates para a realização deste livro, há cerca de três anos, não imaginávamos que o grave cenário de ofensiva patronal contra as normas de proteção ao trabalho, registrado naquela conjuntura, se agravaria tanto. Entre o início de 2014 e hoje, meados de 2017, as normas de proteção trabalho, incluindo aquelas que contemplam a saúde e segurança do trabalho, foram fortemente golpeadas, assim como as condições de sua efetivação.

Dentre as mudanças normativas mais deletérias, destaca-se a aprovação de projeto de lei que permite a terceirização em todas as atividades empresariais, a despeito das inequívocas evidências da relação entre terceirização, adoecimento e morte de trabalhadores (ver, por exemplo, o capítulo 4 do presente livro, ou a obra Saúde e Segurança do Trabalho na Construção Civil Brasileira (J Andrade, 2015)).

Quanto às condições de aplicação, vale apontar mudanças na NR 12 (proteção de máquinas e equipamentos) que buscam inviabilizar a atuação da Inspeção do Trabalho, como a garantia de um salvo conduto para a ilegalidade com a edição de um instrumento normativo, pelo Ministério do Trabalho, que prevê ampla aplicação do critério de dupla visita para beneficiar os empregadores infratores, e que já engendra repercussões negativas inclusive na esfera judicial. Registre-se, também, o esvaziamento continuado da Inspeção do Trabalho, cujos quadros funcionais minguam sistematicamente, sem que haja qualquer indício de revisão desse quadro, a despeito de constituir flagrante desobediência à Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil.

Não bastasse, foi aprovada, pelo Congresso, a chamada reforma trabalhista, que traz uma série de ataques frontais à saúde e segurança do trabalho no Brasil, tanto no que concerne aos limites à exposição a condições e agentes insalubres, quanto em relação aos parâmetros
relativos ao tempo de trabalho e descanso e formas de contratação de trabalhadores, que possuem impactos radicais no adoecimento laboral.

Esses fatos corroboram a vigência de um padrão de gestão do trabalho predominantemente predatório no nosso país, conceitualmente abordado nos capítulos 1, 2 e 3, mas também evidenciado nos demais capítulos deste livro. A integridade física daqueles que trabalham é tratada simplesmente como um limite à acumulação, e a atenuação da sua contínua dilapidação não parece despertar qualquer preocupação, mesmo como parâmetro mínimo de concorrência. Longe de ser apreendido por qualquer espécie de maniqueísmo, esse padrão de gestão predatório é tomado como produto histórico, mas não inexorável, de um domínio patronal sobre aqueles que trabalham parcamente limitado, cujo recrudescimento aprofunda seus traços mais marcantes (como os esforços por mudanças normativas evidenciam), a despeito da retórica comumente vazia sobre promoção da saúde e segurança do trabalho.

Esta, infelizmente, tende a não se restringir ao campo empresarial, espraiando-se pelas instituições públicas.

Este livro é resultado do esforço individual e coletivo dos autores, profissionais renomados nas distintas áreas do conhecimento relacionadas à saúde e segurança do trabalho. Procurou-se identificar algumas das questões conceituais, técnicas e jurídicas que imprimem ou apoiam características centrais do padrão de gestão da força de trabalho no Brasil.

Ao longo dos capítulos, os leitores perceberão que foram diversas as fontes de pesquisa utilizadas para a discussão em cada texto, incluindo inspeções in loco em ambientes de trabalho, bancos de dados da Previdência Social, do Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS), resultados da Fiscalização do Ministério do Trabalho, relatórios de investigação de acidentes efetuados por Auditores Fiscais do Trabalho, decisões judiciais, Termos de Ajuste de Conduta (TAC) do Ministério Público do Trabalho (MPT), pesquisas da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO), entre outros.

A gestão do meio ambiente do trabalho, responsabilidade primeira e central do empregador, é posta em destaque ao longo desta obra, tanto do ponto de vista sociológico, quanto jurídico. Numa sociedade em que o trabalho assalariado hegemoniza a produção da riqueza social, os empregadores são necessariamente os protagonistas na gestão da saúde e segurança do trabalho, já que impõem, de fato, as condições em que opera o processo de trabalho, portanto, de adoecimento ou preservação da saúde daqueles que trabalham. Os demais agentes envolvidos na regulação do trabalho, particularmente sindicatos e instituições do Estado, podem impor condições para limitar a atuação patronal na busca deste pelo lucro, ou tangenciar (ou mesmo pactuar) a colocação de limites ao arbítrio empresarial, contribuindo objetivamente para a perpetuação do padrão de gestão predatório. Esperamos que as discussões deste livro contribuam para que os empregadores, representantes dos trabalhadores e agentes de regulação do Estado tenham mais um instrumental teórico e prático para refletir e atuar.

Este livro está dividido em onze capítulos que abordam questões estruturais sobre a regulação da saúde e segurança do trabalho no Brasil, temas jurídicos e análises práticas relacionadas a temas regulatórios e setoriais.

Os três primeiros capítulos são mais gerais e visam delinear as características mais gerais da saúde e segurança do trabalho no Brasil, particularmente no que concerne ao padrão de gestão do trabalho aqui vigente, com base numa miríade de indicadores. No primeiro capítulo, a partir do conceito de padrão de gestão do trabalho predominantemente predatório, Vitor Filgueiras traça um panorama sobre a saúde e segurança do trabalho no país, inclusive na atual conjuntura, com ênfase na resistência empresarial em relação aos limites normativos que protegem a integridade física dos trabalhadores.

Em seguida, Filgueiras e Sarah Carvalho abordam a ocultação do adoecimento laboral como um dos aspectos centrais do padrão de gestão do trabalho no Brasil, apresentando indicadores que sugerem que a ocultação pode estar sendo deliberadamente incrementada nos últimos anos. No terceiro capítulo, Filgueiras analisa a individualização da saúde e segurança do trabalho no Brasil como outro alicerce de defesa do padrão de gestão predatório, salientando sua capilarização como senso comum que transcende os meios empresariais. Em suma, a primeira parte do livro busca definir características estruturais da gestão do trabalho no Brasil e como o padrão vigente tende a se perpetuar.

No quarto capítulo, Luiz Scienza e Otávio Kowlovisky analisam o conceito de grave e iminente risco, essencial para a preservação da saúde e da vida daqueles que trabalham por meio dos instrumentos do embargo e da interdição de processos de trabalho, obras, máquinas e estabelecimentos. Os autores fazem uma revisão jurídica consistente do conceito, desconstruindo alguns dos preconceitos ainda registrados sobre o tema no campo da regulação do trabalho.

A seguir, Graça Druck faz uma revisão das pesquisas existentes sobre a relação entre terceirização e saúde do trabalho, demonstrando como essa relação é estreita e constitui uma das dimensões da precarização do trabalho engendrada por essa forma de contratação. A autora conclui que “liberar a terceirização no Brasil é legalizar e legitimar o uso predatório da força de trabalho na sua forma mais aguda, desrespeitando os limites físicos dos trabalhadores, expondo-os a riscos de morte e retornando a formas pretéritas de trabalho que transgridem a condição humana”.

No sexto capítulo, André Pessoa e Ilan Fonseca enfrentam questão crucial na regulação pública do trabalho, qual seja, as tutelas de urgência na preservação da saúde e segurança do trabalho, particularmente o embargo e a interdição e as repercussões judiciais dessas medidas. Eles demonstram como essas medidas são, muitas vezes, equivocadamente vistas como radicais, quando na verdade são apenas preventivas, concluindo que a sua frequência deve ser proporcional às condições de risco à saúde e à segurança às quais as empresas expõem seus trabalhadores.

Renata Dutra discute, no capítulo sete, a regulação do direito do trabalho pela Justiça do Trabalho, especificamente no tocante à sua atuação em relação ao adoecimento profissional, trazendo a seguinte indagação: proteção ou banalização? Ao analisar uma série de decisões judiciais, particularmente concernentes às atividades de teleatendimento, Dutra indica que “o padrão de regulação desenvolvido pelo Poder Judiciário, analisado em seu conjunto e, sobretudo, no que toca aos processos remotos que levam ao adoecimento, acaba por tolerar formas de gestão do trabalho conducentes ao adoecimento”.

No oitavo capítulo, Maria Maeno disseca o eSocial, projeto do governo que estabelece um sistema de coleta de informações para fins trabalhistas, previdenciários e fiscais. Ao longo do texto, Maeno discute como o eSocial permite às empresas prestarem informações falsas que não podem ser checadas em relação à segurança e saúde do trabalhador, além do fato de que mudanças das condições de trabalho e a proteção efetiva da saúde do trabalhador provavelmente serão deixadas em segundo plano, ao contrário do aspecto atuarial das fiscalizações.

Os conflitos jurídicos sobre o papel da conduta da vítima para a definição da responsabilidade sobre o infortúnio sãos tratados por Alessandro Silva e Leonardo Vieira Wandelli. Como enfatizam os autores, apesar de a discussão ter caráter jurídico, ela tem efeitos profundos na realidade social, já que a definição dos conceitos determina quem deverá arcar com os prejuízos decorrentes dos atos antijurídicos, com efeitos abrangentes sobre o comportamento empresarial. O atual quadro de individualização, segundo Silva e Wandelli, “decorre, em grande medida, do conhecimento insuficiente que parte de doutrina e da jurisprudência têm das categorias jurídicas que compõem a responsabilidade civil. Portanto, é fundamental conhecer os conceitos, identificar as classificações e estabelecer as distinções imprescindíveis para o domínio dessa matéria e, por conseguinte, para a adequada atribuição da obrigação de reparar os danos”.

Os dois últimos capítulos tratam de setores específicos, a saber, as atividades de teleatendimento e da mineração, constituindo fontes consistentes para conhecimento e consulta por profissionais da área e agentes de regulação do trabalho. Essas atividades, além do grande emprego da força de trabalho, são responsáveis por parcela significativa da acidentalidade e do adoecimento no mercado de trabalho brasileiro.

Odete Reis faz uma acurada análise da relação entre organização do trabalho e adoecimento nas atividades de teleatendimento. A partir de dados agregados e estudos de casos, ela explicita como o imenso aparato de controle sobre os trabalhadores conformado em tais atividades, que inclui metas, punições abusivas, constrangimentos e humilhações, tem como consequência uma possível relação com o surgimento de doenças, corroborando os vários estudos sobre o tema, que têm demonstrando a associação desses fatores com o adoecimento.

Mario Parreiras, muito provavelmente a maior autoridade no campo da saúde e segurança do trabalho nas atividades de mineração, encerra o livro com uma abordagem técnica dos principais riscos envolvidos no setor, constituindo um guia prático para agentes de regulação e atores envolvidos em tal atividade.

Acreditamos que a difusão do conhecimento e o debate aberto podem colaborar para evitar que as mortes e demais lesões ao trabalhador continuem a se multiplicar no nosso país. Para isso, é necessário ser crítico, e autocrítico, fugindo do corporativismo ainda tão presente em nossas instituições.

Nesta obra, como já havia ocorrido na consecução do supracitado Saúde e Segurança do Trabalho na Construção Civil Brasileira (J Andrade, 2015), cada autor apresentou seu ponto de vista individual (ou em parceria) no capítulo redigido. Contudo, existe um ponto em comum em todos os trabalhos: analisar criticamente a realidade vigente.

Todos os autores têm amplo e reconhecido conhecimento nos temas abordados e a maioria deles trabalha diretamente na regulação da saúde e segurança do trabalho brasileira, atuando em campo, convivendo, analisando e intervindo na realidade, inclusive em cooperação com o Ministério Público do Trabalho, seja em ações conjuntas, inspeções, eventos, palestras ou cursos.

Ainda, a organização deste livro foi viabilizada pelo convênio firmado entre a Procuradoria Regional do Trabalho da 20ª Região e a UFS (Universidade Federal de Sergipe), instituição parceira do Ministério Público do Trabalho em projetos e eventos relacionados à saúde e segurança laborais, bem como da parceria criada no âmbito do GETRIN20 (Grupo de Trabalho Interinstitucional da 20ª Região/Sergipe), integrado pela Procuradoria Regional do Trabalho e Justiça do Trabalho da 20ª Região, Ministério do Trabalho e Emprego, Advocacia Geral da União e Instituto Nacional do Seguro Social em Sergipe Registramos também a parceria firmada entre a mesma Procuradoria Regional do Trabalho da 20ª Região com o CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) da UNICAMP (Universidade de Campinas), conforme convênio celebrado em 2014 para viabilizar estudos e pesquisas relacionadas ao mundo do trabalho.

Este livro tem caráter estritamente de utilidade pública, focado no princípio do ressarcimento à sociedade pela ofensa à ordem social e jurídica que o acidente de trabalho provoca (princípio da reparação integral, de quilate constitucional – §3º, do art. 225, da Constituição de 88).

Esperamos que este livro seja um passo importante para se tornar comum a difusão de conhecimento e análise crítica acerca da angustiante realidade trabalhista brasileira, marcada, ainda, por estatísticas assustadoras de acidentes de trabalho, trabalho análogo à escravidão, trabalho infantil, etc.

O livro não tem caráter comercial. Nenhum autor recebeu qualquer quantia, apenas colaboraram por engajamento e por acreditarem que nossa sociedade pode ser diferente. O único valor despendido foi com custos de impressão, originado de acordo no processo nº 0001357-38.2014.5.20.0003, e destinado justamente para promover os direitos sociais por meio desta publicação.

Enfim, mais uma vez, desejamos uma ótima leitura e que os ensinamentos e experiências contidos neste livro possam contribuir para a melhoria efetiva das condições de trabalho nas diversas atividades econômicas existentes no Brasil.

Leonardo Osório Mendonça
Coordenador Nacional da Codemat

Juliana Carreiro Corbal Oitaven
Vice Coordenadora Nacional da Codemat

Raymundo Lima Ribeiro Júnior
Coordenador do Grupo de Trabalho “Políticas Públicas de Saúde e Segurança do Trabalho” da Codemat

Vitor Araújo Filgueiras
Organizador

 

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