Christian Duarte e Carlos Salas
Introdução
Em artigo recente do Wall Street Journal (2 de fevereiro de 2017), intitulado “O fim dos empregados”, se encontra a declaração de um diretor da empresa Virgin Airways feita em uma reunião com investidores em março de 2016: “vamos terceirizar cada um dos postos de trabalho que conseguirmos, sempre que estes não se relacionem com o tratamento direto com o público”. Em dezembro de 2016, quando a terceirização já se havia generalizado, a empresa foi vendida. Hoje, a Virgin Airways terceiriza a venda de passagens aéreas, o manejo das bagagens, as reparações maiores e a alimentação nos voos, o que se traduz em maiores lucros por passageiro que a média das companhias aéreas.
Este exemplo não é um fato isolado. O processo acentuado de externalização inclui hoje em dia numerosas empresas que aproveitam a flexibilidade da legislação trabalhista e o ambiente anti-sindical nos Estados Unidos para diminuir custos e aumentar os dividendos de seus acionistas. Como sempre ocorre nestas circunstâncias, os prejuízos para os trabalhadores são dobrados, uma vez que a diminuição dos custos e a piora das condições de trabalho afetam tantos aqueles que passam a desempenhar as atividades subcontratadas quanto os que permanecem nas empresas terceirizadas.
Este processo de externalização das atividades não é um fenômeno novo no capitalismo. A onda anterior mais recente havia sido a do chamado “enxugamento das empresas” nos anos 1980 e 1990 do século passado. No entanto, a terceirização, com seus altos e baixos, acompanha a história do capitalismo. A situação atual de ofensiva dos grupos capitalistas para impor os custos de recuperação e saída da crise sobre os trabalhadores é, portanto, mais um capítulo da permanente disputa entre capital e trabalho, no qual a terceirização desempenha um papel central.
Neste texto se examina, de maneira geral, a história recente dos processos de terceirização e como este processo vem acompanhado pelo deslocamento geográfico da produção e dos serviços e pela consolidação de redes econômicas, as chamadas cadeias de produção ou de valor. Será mostrado que estes processos seguem uma lógica intrínseca de busca de maior rentabilidade – o que inclui redução de custos diretos e indiretos. Segundo a lógica empresarial, estes custos indiretos incluem sindicatos e impostos. Portanto, uma condição necessária para o avanço nos processos de externalização produtiva é a mudança institucional e das políticas públicas. Ademais, as recentes transformações produtivas e de organização se acentuam apoiadas por mudanças e avanços importantes e diversos na tecnologia, especialmente na tecnologia de transporte, informação e comunicações.
Nas seções a seguir serão analisados os efeitos destes processos sobre os trabalhadores e, em particular, sobre as trabalhadoras, que constituem uma parte significativa da mão de obra ocupada nos setores produtivos onde a terceirização é mais expressiva. Finalmente, será destacado como a terceirização – seja na forma de externalização simples ou de deslocamento geográfico das atividades – traz consigo uma mudança na estrutura organizacional das empresas e tem profundas consequências sobre a organização e as condições de trabalho.
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O enxugamento (downsizing) empresarial no período 1980-2000
O estudo da terceirização na sua expressão atual faz necessário considerar a forma com a qual o capitalismo reestruturou as empresas a partir dos anos oitenta, em um processo duplo de fusões e aquisições, seguido de uma redução da planta de trabalho.
De fato, a nota jornalística citada no início deste artigo tem um importante precedente em uma série de artigos publicados pelo New York Times em 1996 e que foram reunidos no livro The Downsizing of America (publicado em 1996). Define-se downsize como a eliminação planejada de postos de trabalho ou empregos, isto é, uma decisão consciente da empresa de cortar parte da força de trabalho ou eliminar funções, níveis hierárquicos ou unidades (Cascio, 1993).
O início dos anos 1990 testemunhou um acentuado processo de eliminação de postos de trabalho no setor manufatureiro dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que a ocupação nas atividades de serviços crescia (Baumol et al., 2003). Este processo não foi resultado de uma contração na demanda dos produtos manufaturados ou da intensificação do progresso técnico. No período com os maiores cortes – entre 1983 e 1996 – a economia americana cresceu, em média, 3.5% ao ano, não havendo, portanto, um suposto “ambiente recessivo” que justificasse as demissões em massa.
As demissões estiveram associadas, na verdade, a uma estratégia de reestruturação corporativa que buscava incrementar os lucros líquidos das empresas e aumentar seu valor acionário. No discurso dos executivos, as práticas de downsizing visavam a redução de suas operações a fim de revitalizar a companhia e garantir sua competitividade. De fato, a realidade era oposta: as empresas mantinham um quadro executivo inchado, enquanto os salários dos trabalhadores de base eram contraídos. A tendência de queda dos salários dos trabalhadores da produção se relaciona com a abordagem mais agressiva que as corporações americanas adotaram com relação à negociação salarial com os sindicatos . (Gordon, 1996).
Tal processo se materializou em demissões generalizadas em algumas indústrias, as quais nem sempre deram como resultado o alcance do objetivo buscado (Baumol et al., 2003, Capítulo 9). A demissão irrestrita em áreas de menores custos levou a perdas de produtividade, mas garantiu maiores lucros líquidos e menores custos salariais. Entre os setores mais afetados estiveram o de vestuário, o de eletrônicos de consumo, o de fabricação de brinquedos e o de joalheria. Voltaremos mais tarde a examinar brevemente os dois primeiros setores.
O enxugamento da planta de trabalho nesses anos se soma às perdas de postos de trabalho derivadas das fusões e aquisições dos anos 1980. Uma interessante discussão sobre a origem e o impacto deste processo, do qual resulta em queda no número de empresas e diminuição de postos de trabalho em muitas delas, pode ser encontrada no texto de Gordon (1996), ironicamente intitulado Fat and Mean. O argumento de Gordon é que, devido à crise de rentabilidade empresarial nos anos 1970, a classe capitalista assumiu o caminho do crescimento liderado pelos lucros (profit-led growth), isto é, dedicou seus esforços para controlar o crescimento dos salários, combater os sindicatos e conseguir apoio governamental para diminuir as proteções legais aos trabalhadores. Este processo culmina com a eleição de Ronald Reagan e representa o início da era neoliberal. É neste novo ambiente político que aparece a epidemia de fusões e aquisições e que desemboca no movimento de demissões em massa do início dos anos 1990.
As demissões de pessoas ocupadas em uma empresa – quando não derivam de mudanças substantivas na demanda do produto ou dos serviços proporcionados pela firma – não estão diretamente ligadas com o progresso técnico poupador de trabalho, nem tampouco com o ciclo de negócios. Atualmente, se trata de um movimento motivado pelo interesse de recuperar, no curto prazo, o valor acionário das empresas para oferecer maiores lucros anuais distribuídos aos acionistas. Deve-se, também, ao resultado de transformações na estrutura das empresas, orientadas para ampliar os lucros em um horizonte temporal mais amplo.
O foco dos gerentes americanos neste movimento de demissões em massa dos anos 1990 passou a ser demitir trabalhadores e distribuir rendas de forma a garantir os preços das ações, o que gerou elevados retornos aos acionistas (seguindo o princípio de governança de “maximização de valor ao acionista”) e também aos gerentes, uma vez que o ganho com a valorização da ação se tornou uma parte cada vez maior dos seus salários. Em outras palavras, os executivos aumentaram a lucratividade e os retornos financeiros para si e para os acionistas em detrimento dos rendimentos dos trabalhadores.
No entanto, tais políticas nem sempre se transformam em resultados positivos para as empresas, especialmente para as de menor tamanho. No caso das grandes empresas, o impacto da lógica de curto ou longo prazo na rentabilidade pode variar bastante. O impacto sustentado na rentabilidade é maior para aquelas empresas que seguem uma lógica de longo prazo (McKinsey, 2017). Para algumas firmas, os benefícios econômicos antecipados não se materializaram – como redução dos custos, aumento dos lucros e do retorno sobre o investimento – e nem os benefícios organizacionais de se operar com uma estrutura reduzida. Do ponto de vista do emprego, houve declínio da estabilidade, queda do tempo de permanência (aumento da rotatividade), baixos salários, elevada flexibilidade e crescimento da desigualdade de renda e da riqueza. Muitas das vezes, os resultados negativos se davam pela queda da produtividade do trabalho, uma vez que a moral dos empregados era deteriorada pela permanente ameaça de desemprego (Cascio, 1993).
Em última instância, a reestruturação da planta de trabalho é sempre um instrumento para aumentar a rentabilidade, se transformando em elemento para ameaçar os trabalhadores e dissuadir os sindicatos (Baumol et al., 2003; Gordon, 1996; Harrison, 1997). O discurso corporativo de que o downsize atende às necessidades das empresas tornarem-se mais enxutas e eficientes para competir nos mercados globais e nos novos setores mascara a realidade de um conflito de apropriação da riqueza gerado pela empresa que opõem os acionistas e os gerentes, de um lado, pelos ganhos de maiores dividendos e salários (respectivamente), e os trabalhadores, de outro, que, através da insegurança no emprego gerada pelas demissões em massa apresentaram, em média, salários reais declinantes nos Estados Unidos nos anos 1980 e 1990 (Gordon, 1996).
Na manufatura, a diminuição de postos de trabalho também está associada com os processos de terceirização. De fato, a terceirização é uma estratégia usada pelas empresas que têm uma longa história que corre paralela à do capitalismo. Mecanismos de subcontratação podem ser identificados já na Alta Idade Média na produção de vestuário a partir da lã através do sistema de putting out, ou seja, a externalização para as áreas rurais de partes do processo de produção que era levado a cabo nas oficinas artesanais das cidades.
As primeiras formas deste sistema aparecem já no século XIV (Landes, 1969, Capítulo 2), e se transformam em um sistema generalizado na Inglaterra durante os séculos XVI e XVII (Littlefield e Reynolds, 1990). Este sistema de produção – caracterizado por uma relação de dependência entre um mercador-empresário e um trabalhador (ou trabalhadora) rural – representa um avanço na divisão do trabalho. Ao mesmo tempo, contém a semente das formas de trabalho assalariado que culminam com o Capitalismo Industrial, uma vez que diversas etapas da produção são desenvolvidas por artesãos especializados, ainda que o mercador capitalista mantenha a propriedade dos materiais ao longo de todas as etapas de produção (Littlefield e Reynolds, 1990). Arranjos de subcontratação semelhantes ao sistema de putting out persistem nas sociedades contemporâneas, visíveis no trabalho de confecção e que renascem em economias como a dos Estados Unidos, por exemplo (Rosen, 2002).
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Da externalização ao deslocamento para o exterior
A história da indústria têxtil e do vestuário nos Estados Unidos exemplifica o uso da externalização nas primeiras etapas da industrialização devido, principalmente, à existência de oficinas de pequeno porte, sobretudo nas atividades de elaboração do vestuário. Muitas destas oficinas eram de caráter familiar, com força de trabalho basicamente feminina. Com isso, as más condições de trabalho e a exploração eram a regra. As indústrias têxteis e de vestuário mais importantes dos Estados Unidos se localizaram no Nordeste do país, entre Nova Iorque e Massachusetts. Não obstante, as oficinas familiares de costura existiam ao longo do território norte-americano, particularmente nos estados do Sul. O fato de que no Nordeste a estrutura destas indústrias fosse dominada por grandes unidades favoreceu o processo de organização de seus trabalhadores, elemento que ganhou importância depois da Segunda Guerra Mundial e levou a importantes ganhos de salários e condições de trabalho, bem como a quase extinção das oficinas mais precárias. Contudo, a situação política internacional do pós-guerra – com a necessidade de reconstruir o Japão e combater o avanço da esquerda no Sudeste Asiático – levou a um processo de estímulo à produção têxtil e de vestuário no Japão, Coreia, Hong Kong e, posteriormente, Taiwan (Rosen, 2002). Assim se inicia o crescimento explosiva da indústria têxtil e do vestuário no leste da Ásia.
A entrada destas mercadorias nos Estados Unidos começou a colocar pressão sobre as empresas do Nordeste, as quais confrontaram uma intensa competição com as atividades de elaboração de vestuário, concentrada nas empresas do Sul, caracterizadas por menores salários, quase total ausência de sindicatos e forte presença de pequenas unidades e oficinas familiares. Assim, no fim dos anos 1970, se observa o fenômeno de relocalização geográfica com um movimento do Norte em direção ao Sul e à Califórnia, que leva à generalização dos sweat shops: oficinas precárias, sem medidas de segurança ocupacional, baixos salários e longas jornadas, que trabalhavam como terceirizadas de grandes empresas. Depois de uma notável melhoria nas condições de trabalho no Norte dos Estados Unidos no período do Pós-Guerra, já nos anos 1990 a produção de vestuário nestas oficinas havia reaparecido, em particular em Nova Iorque.
Em suma, a transformação das atividades têxteis e de vestuário nos Estados Unidos obedece a um processo mais complexo que a simples busca por menores custos trabalhistas. Esta foi resultado da geopolítica que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial de contenção do avanço das forças de esquerda no mundo, em particular na Ásia. Ao apoiar a capacidade produtiva das indústrias têxteis primeiro e depois da indústria do vestuário, o governo dos Estados Unidos conseguiu recriar as condições para um desenvolvimento industrial nos países asiáticos, mas, simultaneamente, colaborou com a perda de importância da indústria têxtil e do vestuário no próprio país, ainda que tenha terminado reforçando o papel das empresas comercializadoras destes produtos.
Apesar do progresso técnico ter facilitado a operação de plantas têxteis modernizadas nos Estados Unidos – com a subsequente perda de empregos – uma parte importante do processo produtivo do vestuário não pôde ser modernizado ou automatizado. A busca de espaços onde a produção de vestuário fosse mais barata e sem a presença de sindicatos levou à expansão desta indústria para a costa Oeste. Este movimento não parou aí, chegando aos países da Ásia no início dos anos 1960, ao México em meados dos anos 1970 e à América Central nos anos 1980, dando origem a uma onda de deslocamento produtivo.
Este deslocamento rapidamente abarcou a indústria de eletrônicos de consumo, de sapatos, de brinquedos e de joalheria. Todo o processo de mudança na distribuição geográfica destas atividades produtivas esteve marcado por uma forte presença da força de trabalho feminina com baixos salários e más condições de trabalho (Elson e Pearson, 1981; Safa, 1981). Na década de 1980, a introdução da produção flexível e a fabricação em lotes (Piore e Sabel, 1984) eram vistas como elementos que eliminariam grandes blocos de força de trabalho pouco qualificada na indústria global do vestuário. No entanto, tal processo não ocorreu de forma generalizada nesta atividade, tampouco na eletrônica de consumo ou na produção de joias. O motivo é que os ganhos de produtividade derivados de mudanças tecnológicas não eram suficientemente grandes para justificar a eliminação dos trabalhadores menos qualificados.
Ainda que uma parte do processo, como a produção de insumos, pôde ser automatizada com êxito, outras resistiriam à completa mecanização. A indústria têxtil passou por um intenso processo de modernização a partir dos anos 1970 com a generalização das fibras artificiais, enquanto a indústria do vestuário mudou o processo de design de roupas e o corte dos padrões e a indústria eletrônica automatizou os processos de produção de componentes básicos. Não obstante, os processos de acabamento, costura ou montagem não foram automatizados. Assim, a opção por externalizar os processos produtivos intensivos em trabalho e, posteriormente, desloca-los ao exterior dependia de numerosos fatores, como: a abertura comercial e as necessidades de investimento estrangeiro da economia receptora; as condições institucionais de baixa regulação e estabilidade política dos países recebedores; a possibilidade de monitorar o processo produtivo; e os custos e a facilidade de transporte.
A crise mundial iniciada em 1973 abriu espaço para a queda das barreiras comerciais como resultado dos processos de reestruturação global que se desencadeiam na busca de uma renovada rentabilidade (Armstrong et al., 1991; Gordon, 1995). A agenda mundial de livre comércio se acentua a partir dos anos 1980, quando se vive a crise da dívida em muitos países de menor grau de desenvolvimento e dos subsequentes programas de ajuste estrutural orientados pelo Banco Mundial (Beneria, 1999; Armstrong et al., 1991). Nestes programas se enfatizou que as barreiras comerciais fossem diminuídas ou desmanteladas enquanto se buscasse maior investimento estrangeiro direto. Estes processos acentuaram a globalização da produção de vestimentas para o mercado dos Estados Unidos, situação que também foi incentivada pelos grandes grupos de comércio varejista (Rosen, 2002). Assim, o atual processo de deslocamento produtivo se inicia como resultado da busca de vantagens na produção, de menores custos de trabalho e menos regulações trabalhistas, objetivo que se soma com as metas geopolíticas da Guerra Fria de criação de mercados para os produtos asiáticos e, obviamente, para os produtos dos Estados Unidos.
O processo de expandir a terceirização para fora das fronteiras nacionais onde residem as empresas controladores requer uma série de condições básicas. Entre elas, se destacam a possibilidade de supervisionar à distância estes processos, de contar com transporte barato e eficiente e de dispor de uma estrutura organizacional flexível e capaz de responder de imediato a mudanças nos mercados e se adaptar às condições institucionais dos países para onde se desloca a produção. Entre os componentes tecnológicos destas necessidades se destacam os meios de transporte baratos e eficientes. De fato, um dos elementos que facilitou o transporte de grandes volumes de mercadorias a baixo custo foi a uniformização dos contêineres (Levinson, 2016) tanto em termos de design quanto de volume, o que facilitou o transporte, a carga e a descarga de mercadorias. Esta homogeneização é um fato relativamente recente na história dos transportes: a primeira viagem de um contêiner padrão foi feita entre Newark e Galveston em 1956.
Os outros elementos que permitiram o deslocamento da produção foram avanços na eletrônica e nas comunicações, como a microeletrônica, os computadores e as comunicações confiáveis e de alta velocidade. Sob estas condições a produção de vestuário se fragmentou geograficamente de forma importante: se deslocou para Japão, Coreia, Taiwan, Índia, Bangladesh e Vietnam, e também para o México e América Central. Esta mudança aconteceu ao mesmo tempo em que muito do setor de eletrônicos de consumo abandonou o território dos Estados Unidos e seguiu o caminho da Ásia e, posteriormente, do México. No caso do Japão, Coreia e Taiwan, a produção de propriedade local destas indústrias se consolidou ao ponto de que atualmente – no caso do setor de eletrônicos de consumo – a maioria das grandes empresas do setor são asiáticas (Chandler, 2005) ou produzem seus equipamentos fora dos Estados Unidos – como é o caso da Apple, HP e Dell, que terceirizam sua produção para empresas asiáticas.
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A análise da geografia da produção global
Nas seções anteriores foi exposto o caminho que as empresas dominantes seguiram no Pós-Guerra e que culmina na mundialização capitalista (Chesnais, 1997), na qual os processos produtivos se dispersam ao redor do mundo, ao mesmo tempo em que se criam novos espaços de consumo (Coe e Hess, 2013). Estes movimentos nos processos produtivos são iniciados por empresas multinacionais (Dicken, 2011) que se movem pelo mundo sem problemas aparentes. Uma perspectiva popularizada por comentaristas como Thomas Friedman imagina o mundo como um espaço plano onde as mercadorias correm livremente entre produtores e consumidores “globalizados” com preferências altamente homogêneas (Friedman, 2007). Esta imagem simplista deixa de lado as complexidades das relações entre o produtor final e as empresas fornecedoras dos insumos, e entre aquele e o consumidor.
Isto não é um acidente, já que quando se observa de perto esta relação material consumidor-produto-insumo aparecem não apenas as empresas produtoras, distribuidoras e os fornecedores, mas também os trabalhadores, as relações sociais mais amplas, o Estado e as relações entre Estados. Em outras palavras, as análises simplistas abstraem do espaço social onde ocorrem as transações comerciais e os processos produtivos. Ao considerar a complexidade dos processos produtivos globais, é necessário um instrumental que dê conta das inter-relações entre empresas, governo e contexto social. Assim, nas últimas décadas, a análise da produção global e, consequentemente, do comércio internacional foi marcada pelo uso do conceito de cadeias globais, seja de produção, seja de valor e, mais recentemente, pela ideia de redes globais de valor (Bair, 2008).
Bair (2008) apresenta, no capítulo inicial de seu livro, uma genealogia do conceito de cadeia global, que vai desde a ideia inicial de Gary Hamilton e Immanuel Wallerstein de cadeias globais de mercadorias, passando pelo conceito de Cadeia Global de Produção até a ideia de Sturgeon de Cadeia Global de Valor. A ênfase pode mudar, mas a ideia é que se deve analisar a produção de bens e serviços – desde o início de um processo que servirá de um insumo a outros até o momento do consumo final – com adições relativas aos processos de coordenação globalizados que governam estas trocas desde a base até o consumo final. Se trata, assim, de uma análise onde um de seus elementos centrais se refere a quais empresas participam no processo e, sobretudo, quem comanda o resultado final. Em qualquer caso, se trata de uma análise linear, quase do tipo insumo-produto.
Como uma forma de levar em conta que todo processo produtivo é parte de uma série de redes de produção, cada uma das quais contribui para o resultado final, nos últimos anos aparece a ideia de redes globais de valor. Apesar da contribuição destas análises para compreender a evolução recente da produção globalizada, é importante assinalar o papel quase ornamental que têm os trabalhadores nas primeiras análises de Cadeias Globais. Apenas recentemente se discutiram alternativas de análises da estrutura da economia globalizada na qual se insere claramente o papel do trabalho (Coe, 2012).
Existe, portanto, uma necessidade importante de examinar estas cadeias e redes de maneira que o trabalho tenha um papel relevante e não seja considerado como um agente passivo (Selwyin, 2011). Neste sentido, deve-se enfatizar a imperiosa necessidade de recuperar a ideia de que estas cadeias são formadas muitas vezes a partir de processos de terceirização e deslocamento produtivo. Ao estudar a maneira com a qual o capitalismo contemporâneo implantou a produção em diversas regiões, aparece também a necessidade de destacar o papel do espaço nestas formas de reorganização produtiva. Dicken (2011) dá conta da maneira em que os processos globais e locais se articulam de maneira que a geografia da produção se transforma em um elemento explicativo de como se constroem as cadeias globais.
O exemplo mais clássico é o do chamado “Vale do Silício”, que se transforma de uma área de produção industrial de produtos eletrônicos e computadores em uma área que concentra as empresas que controlam enormes cadeias globais no setor de eletrônicos de consumo e de comunicações, mas que não contam mais com esta produção industrial, que foi transferida para a Ásia ou para o México (Lüthje et al., 2013). De qualquer forma – como mostra o estudo do conglomerado da indústria eletrônica de Guadalajara no México (Gallagher e Zarsky, 2007) – a construção das cadeias globais correspondentes dependeu de decisões que levaram em conta a localização espacial, a facilidade de transporte e de comunicação e o ambiente institucional, e não apenas as características de proximidade ou a existência de abundante mão de obra qualificada.
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Externalização e deslocamento produtivo atual: o papel das finanças
A partir dos anos 1970, o comércio mundial se intensificou, primeiro pela recuperação da produção na Ásia e depois por um intenso movimento de fragmentação de atividades produtivas que foram levadas para fora dos países capitalistas mais desenvolvidos, em particular para fora dos Estados Unidos. Este processo, iniciado nas atividades têxteis e de vestuário, rapidamente englobou a indústria de eletrônicos de consumo, de produção de sapatos e de brinquedos. Encabeçado por empresas transnacionais, o deslocamento produtivo levou à criação ou consolidação de atividades industriais nos países que receberam estes novos investimentos. A etapa seguinte foi a relocalização das atividades de serviços, como o atendimento a clientes – os chamados call centers – para outros países. O último avanço nesta área dos serviços está representado pelo deslocamento das atividades de contabilidade, serviços de consultoria e, sobretudo, de criação e adaptação de tecnologias da informação (Lazonick, 2009).
Tem se assistido a um duplo processo de desindustrialização no capitalismo desenvolvido e industrialização no capitalismo em desenvolvimento, onde a deslocalização da indústria de transformação e o deslocamento de determinadas etapas do processo produtivo das empresas dos países desenvolvidos para a periferia do capitalismo, em especial a Ásia, transformaram esta região numa importante recebedora de investimento direto, o que acarretou na difusão acelerado do progresso técnico. Os exemplos mais claros são os Estados Unidos e o Reino Unido e a Coreia e Bangladesh. Os dois lados da moeda do deslocamento das atividades e serviços entre países levaram a uma discussão sobre os benefícios potenciais dos países emissores e dos países receptores destes deslocamentos (Paus, 2009). Não obstante, o deslocamento da produção e dos serviços parece apenas beneficiar às empresas que continuam sendo as controladoras (Milberg e Winkler, 2013), ainda que nem sempre a externalização produtiva resulte em grandes benefícios para as empresas (Berggren e Bengtsson, 2004).
Para o caso do Estados Unidos se revelou que grandes empresas que externalizaram sua produção ou suas atividades de serviço – mesmo quando têm maiores margens de lucro – não usam seus excedentes para o reinvestimento produtivo e sim para o investimento em ativos financeiros ou para recomprar seus próprios títulos e aumentar o valor de suas ações ou os pagamentos aos seus acionistas (Milberg e Winkler, 2009). O resultado é um esforço de financeirização da economia e uma menor taxa de investimento produtivo (Milberg e Winkler, 2013). Para as empresas nos países receptores de investimento a situação é de bonança (Nelson, 2014), mas não para os trabalhadores. Assim, a economia global, hoje, conta com uma crescente atividade do setor financeiro e uma financeirização das empresas produtivas que se retroalimentam entre si, no marco de uma estagnação na maior parte das economias capitalistas desenvolvidas e de uma precarização significativa do trabalho.
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Conclusões
Não seções anteriores foi visto como a economia global tem transformado o comércio internacional e a produção através das cadeias globais (e, às vezes, locais) de produção. Estas cadeias contêm empresas que estão sendo terceirizadas por outras, empresas autônomas que oferecem seus produtos em mercados que não estão restritos a apenas um comprador, e empresas que estão em localizações distantes dos mercados finais. A construção e manutenção destas redes é um processo que envolve não apenas as empresas. Envolve também os trabalhadores e o contexto institucional de cada país ou região que participa nestes processos. Não obstante, o estudo particular de como os trabalhadores são afetados pela externalização e pela deslocalização produtiva não tem estado presente nas pesquisas sobre cadeias de valor. Apenas a partir do esforço recente de alguns pesquisadores (Milberg e Winkler, 2013; Peck, 2017) que se tem buscado sanar sistematicamente esta omissão. No entanto, existem exemplos na literatura de uma preocupação clara em relação aos efeitos da desigualdade gerados pelo deslocamento produtivo. Harrison (1994) adverte sobre os efeitos da terceirização tanto na empresa contratante quanto nas empresas contratadas. O autor destaca que o uso de trabalhadores temporais ou de jornadas reduzidas – inclusive no interior de grandes empresas – se traduz em incentivo para a diminuição do custo salarial e, consequentemente, abertura do leque salarial. Quando Harrison escreveu este texto, o modelo de empresa que terceirizava estava nas atividades de produção de vestuário ou calçado. No início da década de 2000, por sua vez, o novo modelo de emprego que se deriva a partir da emulação daquilo que é feito nas empresas de alta tecnologia – notadamente as do Vale do Silício – parece destacar o emprego temporário e com salários estagnados, contribuindo para o crescimento da instabilidade do trabalho e maior desigualdade econômica (Lazonick, 2009).
A terceirização e o deslocamento produtivo têm tido um grande impacto sobre a força de trabalho feminina, uma vez que as principais atividades afetadas se relacionam com indústrias ou serviços altamente feminizados (Beneria, 2015). Mesmo quando os processos atuais afetam atividades de serviços com significativa presença masculina, as mulheres – particularmente aquelas que vivem nos países capitalistas menos desenvolvidos – continuam sendo as principais afetadas pela redistribuição geográfica das atividades econômicas. Estas tendências apenas acentuam aquelas já presentes nos grandes movimentos de fusões e aquisições e no enxugamento de empresas que ocorrem a partir dos anos 1980 nos Estados Unidos e em outros países de capitalismo desenvolvido. Isto mostra que a busca de maior rentabilidade possível e de maior controle do processo de trabalho segue sendo uma prioridade do capitalismo atual, globalizado ou não (Newsome et al., 2015). Se trata, assim, de uma repetição de uma antiga história, que deve ser contada a partir dos matizes derivados do estudo global e suas interações com os processos locais (Peck, 2017a).
A terceirização, longe de ser um simples mecanismo para o melhor aproveitamento dos recursos disponíveis em uma economia globalizada, orientada para o aumento da produtividade e cujos benefícios se distribuem entre os trabalhadores participantes, se converte em ameaça para os trabalhadores do mundo capitalista, desenvolvido ou não (Levy, 2005). Particularmente porque a lógica das empresas globalizadas é, em geral, uma lógica de curto prazo que usa parte dos excedentes monetários em atividades financeiras (Millberg, 2013), o que significa um menor nível de investimento produtivo e um apoio importante ao domínio do capital financeiro, sobretudo de caráter especulativo. Nas condições atuais de baixo crescimento global, a busca de uma saída para a crise parece se concentrar em conseguir que novamente os trabalhadores arquem com os custos. Os acontecimentos políticos recentes tanto no Brasil como no Reino Unido e nos Estados Unidos revelam evidências que corroboram este ponto. Este avanço da direita que traz consigo fortes retrocessos nos processos de democratização representa um enorme desafio para os trabalhadores.
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